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pessoa vislumbrar parte do seu conteúdo através de uma abertura<br />

envidraçada. Várias vezes, já, uma faixa de luz colorida que caía através<br />

do vidro sobre uma caligrafia desconhecida a transformara num<br />

arremedo da letra de Lolita, levando-me quase a desmaiar enquanto me<br />

recostava numa urna adjacente, quase a minha. Toda vez que isso<br />

acontecia — toda vez que seus garranchos adoráveis, cheios de volutas e<br />

sinais de infantilidade, viam-se transformados na caligrafia monótona de<br />

um dos meus poucos correspondentes — eu me lembrava, achando uma<br />

graça angustiada, das ocasiões do meu passado mais sólido, prédoloriano,<br />

em que de algum modo a luz excessiva de uma janela me<br />

desorientava e meu olho vigilante, esse periscópio sempre atento do<br />

meu vício vergonhoso, vislumbrava nela de muito longe uma ninfeta<br />

seminua congelada no gesto de pentear seus cabelos de Alice-no-Paísdas-Maravilhas.<br />

Revelava-se naquela silhueta de fogo uma perfeição que<br />

tornava meu prazer incontrolável também perfeito, só porque a visão<br />

estava fora do alcance, sem possibilidade de ser atingida e estragada<br />

pela consciência de um tabu que a ela se sobrepunha; de fato, bem pode<br />

ser que a própria atração que a imaturidade exerce sobre mim resida<br />

não tanto na limpidez da beleza infantil — jovem, proibida e imaculada<br />

— quanto na segurança de uma situação em que perfeições infinitas<br />

preenchem a lacuna entre o pouco que é dado e o muito que é<br />

prometido — o extenso e rosigris para-sempre-inconquistável. Mes<br />

fenêtres! Pendendo acima do crepúsculo ingurgitado e da noite<br />

transbordante, rilhando os dentes, eu congregava todos os demônios do<br />

meu desejo contra o parapeito de uma varanda latejante: ele se<br />

aprontava para alçar voo na noite úmida, negra e adamascada; e<br />

decolava — ao que a imagem iluminada se deslocava, revertia-se Eva a<br />

costela, e nada mais se mostrava na janela além de um homem obeso e<br />

semivestido lendo o jornal.<br />

Como às vezes eu conseguia vencer a disputa entre o meu delírio e a<br />

realidade natural, a ilusão era uma coisa suportável. A dor começava a<br />

ultrapassar minha capacidade de tolerância quando o acaso se imiscuía<br />

na disputa e me roubava o sorriso que se me destinava. “Savez-vous<br />

qu’à dix ans ma petite était folle de vous?”, perguntou-me uma mulher<br />

com quem conversei num chá em Paris. A petite acabara de casar-se a<br />

quilômetros dali, e nem mesmo consegui lembrar-me se já reparara nela<br />

no jardim, perto daquelas quadras de tênis, uma dúzia de anos antes. E<br />

agora, do mesmo modo, a radiosa antevisão, a promessa de realidade,<br />

uma promessa a ser não só sedutoramente simulada como ainda<br />

nobremente cumprida — tudo isso, o acaso me negava —, o acaso e a<br />

troca por personagens menores da parte do autor pálido e adorado.<br />

Minha fantasia foi ao mesmo tempo proustianizada e procustianizada;<br />

pois naquela manhã em particular, num dia do final de setembro de

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