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inclinar a cabeça para a frente e então, pulando numa perna só, o rosto<br />

enfeado pela careta preparatória que as crianças costumam sustentar<br />

até que as lágrimas brotem, bateu em retirada — sendo imediatamente<br />

seguida e consolada na cozinha por Avis, que tinha um pai tão bom e<br />

corado, um irmãozinho rechonchudo e uma irmãzinha bebê novinha em<br />

folha, e um lar, e dois cachorros sorridentes, enquanto Lolita não tinha<br />

nada. E lembro uma cena que faz um pendant claro com esta —<br />

igualmente num cenário de Beardsley. Lolita, que lia perto da lareira,<br />

espreguiçou-se e então perguntou, o cotovelo para cima, com um<br />

grunhido: “Mas onde ela está enterrada afinal?” “Quem?” “Ah, você<br />

sabe, minha mãe assassinada.” “E você sabe onde fica o túmulo dela”,<br />

respondi contido, dizendo em seguida o nome do cemitério — na saída<br />

de Ramsdale, entre a estrada de ferro e Lakeview Hill. “Além do mais”,<br />

acrescentei, “a tragédia de um acidente como esse fica bem vulgarizada<br />

pelo epíteto que você escolheu usar. Se quiser realmente obter um<br />

triunfo espiritual sobre a ideia da morte —”. “Está bem”, disse Lo saindo<br />

lânguida da sala, e por longo tempo fiquei com os olhos lacrimejantes<br />

fixos no fogo. Em seguida peguei o livro que ela estava lendo. Era algum<br />

lixo desses para jovens. Havia uma garota melancólica, Marion, e sua<br />

madrasta que, contra todas as expectativas, era descrita como uma ruiva<br />

jovem, alegre e compreensiva que explicava a Marion que sua mãe<br />

morta fora na verdade uma heroína, pois decidira dissimular seu grande<br />

amor pela filha por estar perto da morte, não querendo que Marion<br />

sentisse demais a sua falta. Não corri para o quarto dela clamando nada.<br />

Sempre preferi a higiene mental de evitar a interferência. Agora,<br />

enquanto me debato e argumento com a minha memória, lembro que,<br />

nessa e em ocasiões semelhantes, sempre tinha o hábito e o método de<br />

ignorar os estados mentais de Lolita enquanto me dedicava a reconfortar<br />

minha própria vileza. Quando minha mãe, num úmido e lívido vestido,<br />

sob um denso nevoeiro (assim a imaginava sempre com toda a nitidez),<br />

correra arquejante de êxtase, subindo aquele rochedo acima de Moulinet<br />

para lá ser atingida por um raio, eu era apenas um bebê, e em<br />

retrospecto nunca pude localizar nenhuma ânsia de saudade do tipo<br />

aceito em qualquer momento dos meus primeiros anos, por mais<br />

selvagemente que psicoterapeutas me tenham interrogado em meus<br />

períodos posteriores de depressão. Mas admito que um homem com meu<br />

poder de imaginação não pode alegar desconhecimento das emoções<br />

universais. Posso também ter confiado além da conta nas relações<br />

anormalmente frias entre Charlotte e sua filha. Mas a finalidade terrível<br />

de todo este argumento é a seguinte. Ficou gradualmente claro para<br />

minha convencional Lolita, ao longo de nossa coabitação singular e<br />

bestial, que mesmo a mais miserável das vidas em família era melhor<br />

que aquela paródia de incesto que, a longo prazo, era o melhor que eu

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