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terceira carta, presumivelmente (duas, em envelopes selados, já<br />

estavam separadas na escrivaninha). Voltei para a cozinha.<br />

Peguei dois copos (brindar a St. Algebra? a Lo?) e abri a geladeira,<br />

que rosnou malévola para mim enquanto eu arrancava o gelo das suas<br />

entranhas. Reescrever. Tornar a deixar que ela lesse. Ela não se<br />

lembraria dos detalhes. Mudar, forjar. Escrever um novo fragmento e<br />

mostrar a ela, ou deixar bem à mostra. Por que às vezes as torneiras<br />

gemem tão horrivelmente? Uma situação realmente horrível. Os<br />

pequenos blocos de gelo em forma de travesseiro — travesseiros dos<br />

ursinhos polares, Lo — emitiam sons ásperos, estalos torturados<br />

enquanto a água morna os desprendia de suas celas. Bati os dois copos<br />

na mesa lado a lado. Verti neles o uísque e um pingo de soda. Ela vetara<br />

meu gim com abacaxi. A geladeira latiu e sua porta bateu. Carregando<br />

os copos, atravessei a sala de jantar e falei através da porta que exibia<br />

uma fração de fresta, passagem insuficiente para o meu cotovelo.<br />

“Eu lhe trouxe uma bebida”, disse eu.<br />

Ela não respondeu nada, a vaca doida, e eu pousei as bebidas na<br />

prateleira, ao lado do telefone que começara a tocar.<br />

“É Leslie falando. Leslie Tomson”, disse Leslie Tomson, adepto de<br />

mergulhos matinais. “A sra. Humbert foi atropelada, sr. Humbert, e o<br />

senhor precisa vir depressa.”<br />

Respondi, talvez com uma certa irritação, que minha mulher estava<br />

sã e salva, e ainda com o fone na mão, abri a porta e disse:<br />

“Um homem acabou de me dizer que você morreu, Charlotte.”<br />

Mas não havia Charlotte alguma na sala.<br />

23<br />

Corri para fora de casa. O lado oposto de nossa ruazinha em declive<br />

apresentava um panorama peculiar. Um Packard grande e lustroso<br />

enveredara pelo gramado inclinado da Srta. Defronte, formando um<br />

ângulo com a calçada (onde uma manta xadrez caíra amontoada), e lá<br />

tinha parado, reluzindo ao sol, suas portas abertas como asas, suas rodas<br />

dianteiras enterradas fundo na vegetação rasteira verde. À direita<br />

anatômica desse carro, no gramado aparado do jardim em aclive, um<br />

velho cavalheiro de bigode branco, bem vestido — terno cinza de paletó<br />

jaquetão, gravata-borboleta de bolinhas —, estava estendido de costas,<br />

as pernas compridas muito juntas, como a estátua de cera de um morto<br />

em tamanho natural. Preciso traduzir o impacto de uma visão<br />

instantânea numa sequência de palavras; seu acúmulo físico na página<br />

acaba por trair o clarão instantâneo, a unidade clara de impressões:<br />

manta amontoada, carro, velho-boneco. A enfermeira da Srta. D.<br />

correndo com as roupas farfalhantes, um copo semi-vazio na mão, de<br />

volta para a varanda cercada de tela — onde a própria velha senhora,<br />

aprisionada, escorada e decrépita, pode ser imaginada emitindo um

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