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Um pingo de chuva caiu-me nos nós dos dedos. Voltei para dentro da<br />

casa em busca de alguma coisa, enquanto John levava minhas malas<br />

para o carro, e então aconteceu uma coisa estranha. Não sei se nestas<br />

notas trágicas enfatizei suficientemente o peculiar efeito “eletrizante”<br />

que a aparência do autor — pseudocéltica, atraentemente simiesca,<br />

jovialmente máscula — tinha sobre as mulheres de todas as idades e<br />

todos os meios. Claro que uma proclamação como esta feita na primeira<br />

pessoa pode soar ridícula. Mas de tempos em tempos preciso lembrar ao<br />

leitor minha aparência, assim como um romancista profissional, depois<br />

de dar a um de seus personagens um maneirismo ou um cão, precisa<br />

continuar a apresentar esse cão ou o mesmo maneirismo cada vez que o<br />

personagem surgir em cena no decorrer do livro. No caso em pauta,<br />

porém, pode haver mais coisas em jogo. Minha boa aparência tristonha<br />

precisa estar sempre em mente para que minha história seja<br />

devidamente compreendida. A pubescente Lo desfalecia tanto diante<br />

dos encantos de Humbert quanto ao som das canções soluçantes; a<br />

adulta Lotte me adorava com uma paixão madura e possessiva que hoje<br />

deploro e respeito mais do que poderia dizer. Jean Farlow, que tinha<br />

trinta e um anos e era absolutamente neurótica, também parecia ter<br />

desenvolvido um forte afeto por mim. Ela era bela à maneira de uma<br />

estátua de madeira, com um rosto de terra de siena queimada. Seus<br />

lábios eram como volumosos pólipos carmesins, e quando ela emitia seu<br />

singular riso latido exibia dentes grandes e opacos e gengivas pálidas.<br />

Era muito alta, usava sempre calças com sandálias ou saias<br />

encapeladas com sapatilhas de balé, tomava qualquer bebida forte em<br />

qualquer quantidade, sofrera dois abortos, escrevia histórias sobre<br />

animais, pintava, como sabe o leitor, paisagens lacustres, já nutria o<br />

câncer que haveria de matá-la aos trinta e três anos, e era<br />

definitivamente desprovida de atrativos para mim. Imaginem então meu<br />

espanto quando, poucos segundos antes da minha partida (ela e eu<br />

estávamos de pé no corredor), Jean, com seus dedos sempre trêmulos,<br />

tomou-me pelas têmporas e, com lágrimas em seus cintilantes olhos<br />

azuis, tentou, sem sucesso, colar-se aos meus lábios.<br />

“Cuide-se”, disse ela, “e dê um beijo em sua filha por mim”.<br />

Uma trovoada reverberou pela casa, e ela acrescentou:<br />

“Talvez, em algum lugar, um dia, num momento menos infeliz,<br />

possamos nos ver novamente” (Jean, o que quer que você seja, onde<br />

quer que esteja, no tempo-espaço negativo ou no tempo positivo do<br />

espírito, perdoe-me por tudo isso, inclusive os parênteses).<br />

E um instante mais tarde eu apertava as mãos do casal na rua, a rua<br />

em declive, e tudo voava e rodopiava ante a aproximação do branco<br />

dilúvio, e um caminhão trazendo um colchão da Filadélfia estacionava<br />

confiante diante de uma casa vazia, e o pó corria e se contorcia sobre a

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