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transposto para os desenhos. Os desenhos são artefactos visuais pertinentes no campo da<br />

afirmação da infância e do primado da sua voz. A realização artística pelas crianças afirma-se<br />

como prática cultural por direito próprio.<br />

Subjacente à criação artística está o Imaginário da infância, um componente central da<br />

“compreensão e significação do mundo pelas crianças” (Sarmento, 2003), estruturado a partir do<br />

real e colocado no plano da interação com pares, adultos e a generalidade da sociedade em<br />

processos partilhados, dinâmicos e multidirecionais. A partir desta complexa rede de<br />

transmissão, apropriação e reinterpretação de significados que se materializa nas relações<br />

estabelecidas com o outro e com o próprio, no caráter lúdico e reiterado dessas interações e em<br />

toda a dimensão fantasista atribuida ao real, constroi-se um imaginário coletivo da infância que<br />

Manuel Sarmento invocou na sua concetualização das Culturas da Infância.<br />

Os desenhos das crianças e as suas narrativas são janelas para diversos mundos provenientes<br />

de distintos planos do universo humano. Dos desenhos recolhidos foi possível atribuir nomes a<br />

diferentes categorias temáticas: o Mundo Manifesto, que é a expressão de toda uma dimensão<br />

material das representações sociais; o Mundo Descoberto, que expressa uma transição da<br />

materialidade para as relações e dinâmicas; o Mundo Humano, constituido pelas pessoas que<br />

integram o universo hospitalar; e o Mundo Simbólico, onde se localizam as representações que<br />

exprimem significados para além dos grafismos. De modo transversal a todos os desenhos<br />

realizados pelas oitenta crianças que aceitaram participar na investigação, o Imaginário e a<br />

Subjetividade suportam as narrativas.<br />

Do “Mundo Manifesto” começo por destacar o edifício que representa o hospital. Uma exploração<br />

dos edifícios retratados pelas crianças revela diversas opções. O mesmo hospital pode ter<br />

diferentes representações. Podem ser reproduções fiáveis, prédios altos, desumanizados e<br />

austeros, habitações tradicionais, como as casas de telhado triangular, ou representações de<br />

formas de habitação próprias do local de origem, caso da cabana filipina ou da cubata congolesa.<br />

Esta pluralidade de opções revela a reinterpretação do real pelas crianças, num processo plural<br />

de estruturação de significados comandado pela criatividade.<br />

Destaco ainda o Meio Artificial, dado ser notório que a representação do hospital é indissociável<br />

da sua envolvência e dos acrescentos humanos ao seu contexto. O hospital não surge como um<br />

elemento isolado, mas envolvido de um todo urbano. Um dos elementos que se destaca com<br />

mais relevância desse universo é a ambulância. A sua representação possui características que<br />

facilitam a sua identificação. É o caso dos símbolos de cruz vermelha, da grafia, ou mesmo da<br />

sirene. A representação da luz proveniente da sirene resume-se a pequenos traços a partir de<br />

um ponto imaginário. Deste modo, com um só ponto de fuga, a sirene tem luz e movimento.<br />

Por último, o Meio Natural, porquanto se observa a utilização recorrente de elementos naturais<br />

na representação do hospital. Verifica-se uma ofensiva da natureza sobre o espaço urbano que<br />

contextualiza o hospital. Esses elementos são aplicados fora e dentro do espaço hospitalar.<br />

Destacam-se o sol, por vezes sorridente, as árvores, as flores, as nuvens, o arco-íris, as aves e<br />

outras espécies animais, as borboletas e a água.<br />

Na categoria do “Mundo Descoberto”, isto é, todos os elementos que remetem para o interior das<br />

paredes do hospital, há um universo material que emerge dos desenhos. Destacam-se a logística<br />

hospitalar e uma exposição multidimensional da realidade encontrada. Há também uma<br />

dimensão imaterial, revelada nas interações humanas: as dinâmicas hospitalares e as relações<br />

de poder.<br />

Da “Dimensionalidade” gostaria de destacar o tempo. A dimensão temporal é utilizada com<br />

inventividade e está patente não apenas nos desenhos, como também nas próprias narrativas.<br />

É o caso da criança que fantasia sobre o tempo “depois” do internamento, dando corpo à<br />

recuperação de um quotidiano normal, ou de outra ainda para quem o “logo” é o momento em<br />

que a sua mãe subirá uma escadaria para reocupar o lugar junto a si. Somos ainda levados a<br />

experienciar o tempo que se move ao compasso do relógio, marcando o ritmo da espera pela<br />

alta hospitalar.<br />

Ainda no tema do Mundo Descoberto, há que referir o modo como as crianças hospitalizadas<br />

percebem as relações de Poder. Um dos aspetos mais representativo dessa clivagem de poder<br />

é o direito do adulto exercer dano corporal mediante procedimentos invasivos. É nestas<br />

circunstâncias que a ausência de poder da criança se manifesta. Muitas vezes não lhe é prestado<br />

qualquer esclarecimento relativamente à inevitabilidade dos procedimentos, acabando os<br />

mesmos por ser realizados de modo forçado. A divergência de poder manifesta-se também<br />

simbolicamente nas opções de distribuição das personagens no plano pictórico e no seu<br />

posicionamento desigual. Estas opções são visíveis na representação dos adultos a pé ou em<br />

marcha, por oposição à representação das crianças deitadas. Contudo, as crianças também<br />

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