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lugares para infância, por exemplo, como mecanismos de segurança e proteção para umas e<br />
desamparo e insegurança para outras. Portanto, os não lugares da infância são percepcionados<br />
pelo entendimento do seu oposto: os seus lugares, instituídos no percurso da modernidade, para<br />
utilizar o príncipio metodológico de Foucault (1995) e as teses sociológicas de Sarmento (2005).<br />
A sociologia da infância, em especial os estudos de Manuel Sarmento (2005, 2006, 2008) e as<br />
pesquisas históricas no contexto das transformações da família e do desenvolvimento da escola<br />
moderna (Ariès, 1986; Del Priory 2010 e Freitas 2011), apontam-nos o lugar que a criança ocupa<br />
nos enquadramentos discursivos de poder e saber, no percurso da construção social da infância<br />
na sociedade moderna. Existem crianças em condições sociais diversas e adversas, portanto,<br />
ocupantes de múltiplos lugares, os quais lhes serão designados de acordo com o espaço social<br />
e o tempo histórico em que estão inseridos. Essas circunstâncias e as condições de vida da<br />
criança têm sido emolduradas em categorias paradoxais, apontando um lugar positivo e um lugar<br />
negativo para ela. Lugares esses engendrados como matrizes normativas que vão estabelecer<br />
o lugar e o tempo da infância como um entre-lugar e um entre-tempo – para afirmar que a<br />
infância é “O espaço intersticial entre dois modos – o que é consignado pelos adultos e o que<br />
é reinventado nos mundos de vida das crianças – e entre dois tempos – o passado e o futuro.<br />
É um lugar, um entre-lugar, socialmente construído, mas existencialmente renovado pela<br />
acção colectiva das crianças. Mas um lugar, um entre-lugar, pré-disposto nas suas<br />
possibilidades e constrangimentos pela História. É, por isso, um lugar na História ” (Bhabha<br />
apud Delgado e Muller, 2006, p. 19)<br />
Na modernidade, à infância foram reservados espaços específicos separados do mundo dos<br />
adultos e assentado na estruturação das instituições de educação e controle da criança, tais<br />
como a escola, a família (Sarmento, 2006). No entanto, esses espaços se configuram como um<br />
lugar em permanente mudança. Neste entre lugar e no seu entre tempo geracional - um<br />
interstício que funciona como lugares sociais para ela – as crianças engendram suas culturas e<br />
vivenciam, ou não, seus tempos de infância 32 , com seus pares (Sarmento, 2005). As crianças<br />
reais e concretas experienciam, nas suas práticas sociais, os efeitos daquilo que Foucault (1995)<br />
chama de práticas divisórias de saber e poder em que elas são educadas, socializadas,<br />
cuidadas, tratadas, esquecidas ou abandonadas, de modo ambíguo, contraditório e em<br />
permanente tensão. Nessas relações são também classificadas, nomeadas, adjetivadas, de<br />
modo que as crianças vão aos poucos incorporando nas suas identidades essas<br />
adjetivações/interdições, embora de modo recriado no exercício possível da liberdade. Este<br />
processo objetiva a criança em capaz e incapaz, em louco e são, em “burro” e inteligente, em<br />
obediente e desobediente, disciplinado e indisciplinado, em delinquentes e bons meninos, e<br />
assim por diante.<br />
A objetivação do sujeito criança que se dá, dividindo no seu interior. A criança é cindida, dividida<br />
e interpelada, de modo a promover a obediência e as condições de possibilidade de resistência<br />
contra as formas de sujeição, que insistem na subjetivação pela negação à criança, pela<br />
passividade e sua não participação em questões que dizem respeito à sua vida presente e futura.<br />
A própria etimologia da palavra infância aponta para essa negatividade, uma vez que significa “a<br />
idade do não-falante, do que transporta simbolicamente o lugar do detentor do discurso<br />
inarticulado, desarranjado ou ilegítimo. O aluno é o sem luz; a criança é quem está em processo<br />
de criação, de dependência, de trânsito para um outro.” (Sarmento, 2005, p.368). A incompletude<br />
da infância, sua suposta incapacidade racional está marcada não apenas nos discursos que se<br />
produzem sobre ela, mas também na definição dos lugares e não lugares aos quais ela poderá<br />
ascender, circular, tomar a palavra, enfim, existir e resisitir. Assim, elas são transformadas em<br />
sujeitos pela negação e a interdição: são inimputáveis juridicamente, não podem votar, nem ser<br />
votadas, não podem casar, não podem se apaixonar, nem conduzir, nem trabalhar, não podem<br />
viajar sozinhas, não são competentes para decidir sobre questões que lhe dizem respeito, etc.<br />
(Sarmento, 2005). É portanto, pela negação e a interdição que se institui os não lugares da<br />
infância e os seus lugares geracionais, sociais e territoriais.<br />
Segundo Sarmento – na perspectiva da sociologia da infância que considera as crianças como<br />
atores sociais - e Foucault nos estudos genealógicos de poder e saber, que as toma como<br />
sujeitos; essas interdições no campo do governo da infância se dão em nome da sua proteção e<br />
segurança. O que expressa o desenvolvimento do processo civilizatório marcado pelas técnicas<br />
de governo das populações, que visam não mais mandar matar ou deixar viver - como fazia o rei<br />
32<br />
Tempo de infância pode ser compreendido pelo conceito de “gramática das culturas da infância”,<br />
desenvolvido por Sarmento (2005:374) quando trata da diferença dos princípios de estruturação do sentido<br />
que lhe são característicos, em contraposição aos que lhes são atribuídos pela sociedade adulta.<br />
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