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transeuntes porque não podemos suportá-las, pois elas nos revelam, nos deixam nus a nós<br />

mesmos.<br />

A fronteira é o lugar de onde olhamos para as condições em que vivem as crianças e<br />

adolescentes em situação de rua em Goiás, especificamente, as de Goiânia. Por fronteiras<br />

entendemos uma situação de confronto, de conflitos, de expansão e de luta por territórios<br />

(Martins, 1997) tendo “de um lado” os chamados civilizados, os normais, e “do outro”, aqueles<br />

que são classificados como primitivos ou incivilizados, os anormais.<br />

A fronteira é, sobretudo, no que se refere aos diferentes grupos dos chamados civilizados<br />

que se situam ‘do lado de cá’, um cenário de intolerância, ambição e morte. É também, lugar<br />

da elaboração de uma residual concepção de Esperança, atravessada pelo milenarismo da<br />

espera no advento do tempo novo, um tempo de redenção, justiça, alegria e fartura. O tempo<br />

dos justos. Já no âmbito dos diversos grupos étnicos que estão “do outro lado”, e no âmbito<br />

das respectivas concepções do espaço e do homem, a fronteira é, na verdade, ponto limite<br />

de territórios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes modos por diferentes<br />

grupos humanos (MARTINS, 1997, p. 11-12).<br />

A fronteira é abordada em duas perspectivas: limites territoriais, onde há a permissão de<br />

circulação para uns, aqueles que pertencem à “boa sociedade” e a proibição silenciosa e<br />

ostensiva para outros, no caso, as estranhas e indesejáveis crianças de rua. O segundo tipo de<br />

fronteira percebida na pesquisa é a do confronto, da luta, do racismo de Estado (Foucault, 2008),<br />

diante de um acontecimento a evitar que são as crianças “monstras” que vivem nas ruas,<br />

perambulando de um lado para outro, fugindo da repressão policial e dos traficantes credores.<br />

Aquelas que escaparam ao controle da família, da escola, e da assistência social. Muito embora,<br />

não conseguem, por muito tempo, escapar à violência do Estado e do tráfico.<br />

A criança de um modo geral vive em uma posição fronteiriça, em um entre tempo e um entre<br />

lugar geracional, que por definição já lhe reserva o lugar da desrazão, da menoridade. Para a<br />

criança pobre e excluída, as condições fronteiriças se multiplicam, tornam-se mais complexas,<br />

conflituosas e desumanas, até chegar a uma condição de ruptura total, em que não há mais lugar<br />

para elas, pois, nem nas ruas elas podem se fixar.<br />

Os dados e a experiência de campo nos fez perceber a diversidade de fronteiras presentes nas<br />

experiência desses sujeitos em situação de rua (1517), que já nascem no limite da fronteira<br />

classe onde de um lado estão as famílias historicamente excluídas - nos vários sentidos em que<br />

se possa pensar a exclusão - e do outro lado da fronteira está a chamada “boa sociedade”, que<br />

exige do Estado proteção contra a pobreza ameaçadora. Nessa condição fronteiriça, crianças e<br />

adolescentes são imersas nos conflitos familiares e nas necessidades materiais, que os<br />

encaminha para as ruas da cidade em busca de trabalho para o próprio sustento (628) e o da<br />

família (601), entre outras motivações, como por exemplo para ter liberdade, por perda dos entes<br />

familiares, perda de moradia, por ter mãe prostituta, alcoolismo e drogas na família, pais<br />

traficantes e carcerários, abuso sexual, por ter a família toda de rua, como aparece na tabela 19<br />

(“por que razão pede ou trabalha na rua” x “o que faz com dinheiro que ganha”) e 4 (“por que<br />

razão passou a dormir na rua ou na instituição”).<br />

Na rua começam outras batalhas marcadas por invisibilidades e visibilidades. Essas crianças e<br />

adolescentes permanecem no anonimato quase constantemente, inseridos numa espécie de<br />

naturalização da miséria. Na invisibilidade desenvolvem diversas pequenas ações, através das<br />

quais se tornam visíveis. Eles saem, portanto, do anonimato por meio das ações “criminosas”,<br />

sejam os pequenos delitos por elas praticados, ou as relações fronteiriças que estabelecem com<br />

a polícia, onde o limite do humano é dado pela violência do extermínio, sob a ordem do tráfico,<br />

o consentimento do Estado e o apoio da sociedade. Crianças e adolescentes têm sido<br />

exterminadas em Goiás. Dados do MP apontam para 279 sujeitos apenas de janeiro de 2008 a<br />

julho de 2010.<br />

A tabela 4, que responde à questão “por que razão passou a dormir na rua/instituição?” mostra<br />

os motivos pelos quais crianças e adolescentes passaram a fazer das ruas espaço de<br />

sobrevivência. As respostas foram todas do campo das mazelas produzidas pelas relações de<br />

exploração e de “degradação do humano” (Martins,1997) ao se tratar das lutas entre os<br />

chamados civilizados e os “Outros”. As estratégias de sobrevivência dos sujeitos pesquisados<br />

coloca-os em permanentes fronteiras de risco: de um lado, crianças e adolescentes<br />

amedrontados e sem lugar; e do outro, a repressão policial, a discriminação social e o descaso<br />

do poder público obrigando-os a uma dinâmica perigosa: ora a buscar refúgio e segurança sob<br />

a tutela dos traficantes, ora a fugir destes e a ser eliminados por eles e pela polícia. Eles migram<br />

para vários pontos da cidade, uma hora estão aqui outrora estão acolá, estabelecendo novas<br />

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