O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
166<br />
nos arranjos hierárquicos, na relação entre dádivas e dívidas, na política do favor, nas formas<br />
<strong>de</strong> quitação das promessas etc. Estes aspectos parecem constituir, à primeira vista, os núcleos<br />
geradores <strong>de</strong> formas significativas <strong>de</strong> interação social. Atuar com este foco implica a<br />
caracterização dos arranjos interacionais que constituem as relações sociais elementares dos<br />
ilhéus 2 .<br />
pertence ao futuro, porque o presente trabalho também não proce<strong>de</strong>rá a um estudo <strong>de</strong>talhado do sistema <strong>de</strong><br />
parentesco por ele mesmo, mas procurará concebe-lo como embebido nas formas elementares <strong>de</strong> interação<br />
social. Vale lembrar que um dos consensos importantes neste campo hoje em dia, refere-se à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
conectar o parentesco com outros sistemas que informam a estrutura social, tais como o político, o econômico, o<br />
sociológico, o cosmológico etc (DUMONT, 1975). No que se refere ao estudo do parentesco em socieda<strong>de</strong>s<br />
complexas, notamos mais ainda a importância <strong>de</strong> não <strong>de</strong>fini-lo como um domínio a priori mas, ao invés disso, a<br />
premissa em construí-lo analiticamente em função <strong>de</strong> outras dimensões da vida social (ARAGÃO, 1982;<br />
ABREU, 1982).<br />
Nesse sentido, a abordagem do problema está inserida nos <strong>de</strong>senvolvimentos contemporâneos dos<br />
estudos <strong>de</strong> organização social e parentesco, segundo os quais <strong>de</strong>ve-se aliar, “o rigor formal a uma sensibilida<strong>de</strong><br />
frente à dimensão simbólica e à complexida<strong>de</strong> empírica do objeto, livre da idéia arcaica <strong>de</strong> que o parentesco é<br />
uma ‘or<strong>de</strong>m eminente’ que nos introduz diretamente no ‘universal’ ou que <strong>de</strong>ve ser uma escolha analítica<br />
apriorística” (VIVEIROS DE CASTRO, 1995).<br />
Por outro lado, examinando a literatura brasileira pertinente ao parentesco e suas possíveis conexões<br />
com o “parentesco ilhéu”, verificamos que esta parece ter-se confinado por longo tempo ao <strong>de</strong>bate entre os<br />
partidários e os contrários ao mo<strong>de</strong>lo gilbertiano da família patriarcal, rural, escravista e poligâmica (MENDES<br />
DE ALMEIDA et alii, 1987). Embora Antônio Cândido tenha lembrado em 1951 que a “família patriarcal”<br />
dominante, estava cercada <strong>de</strong> formas não-patriarcais <strong>de</strong> organização doméstica e o próprio Freire tenha citado<br />
que o patriarcalismo engendrou formas antipatriarcais (DaMATTA, 1987, p. 118), importa registrar que este<br />
<strong>de</strong>bate revelou as limitações <strong>de</strong> uma perspectiva substancialista e atomizada da família enquanto unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
análise.<br />
Embora haja uma gran<strong>de</strong> tradição <strong>de</strong> estudos sobre família e po<strong>de</strong>r político no Brasil (QUEIROZ, 1976;<br />
BEZERRA, 1995), pouca atenção se <strong>de</strong>u ao estudo dos sistemas <strong>de</strong> parentesco (ABREU FILHO, 1982, p. 96).<br />
As referências ficam por conta dos estudos sobre o “compadrio” (ARANTES, 1975, 1994; WOORTMANN E.,<br />
1995), visto como uma forma <strong>de</strong> “parentesco ritual” e analisado entre teses utilitaristas ou holistas (LANNA,<br />
1995, p. 198), e sobre o “campesinato”, em que se <strong>de</strong>stacam as relações entre parentesco e herança da terra<br />
(MOURA, 1987; WOORTMANN, E., 1995.; WOORTMANN, K., 1990). Por último, temos estudos mais raros,<br />
como o <strong>de</strong> Abreu Filho (op. cit.), em que se tenta <strong>de</strong>senvolver uma alternativa metodológica às investigações<br />
sobre família a partir da aplicação direta dos procedimentos consagrados pela antropologia no estudo do<br />
parentesco como sistema (op. cit, p. 96). As conclusões a que chegaram tais estudos, embora mereçam uma<br />
resenha <strong>de</strong>talhada, apontam <strong>de</strong> maneira geral para a existência <strong>de</strong> categorias locais como “sangue”, “nome <strong>de</strong><br />
família”, “raça”, que <strong>de</strong>finem o parentesco enquanto um domínio cultural específico (ABREU FILHO, op. cit.),<br />
para a existência <strong>de</strong> arranjos locais, como o casamento com a prima paralela (WOORTMANN, E., 1995) e a<br />
recorrência da “fuga” (WOORTMANN & WOORTMANN, 1993), e uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />
compensatória entre irmãos e irmãs, para assegurar a menor fragmentação da proprieda<strong>de</strong> da terra e driblar o<br />
antigo Código Civil (MOURA, op. cit.).<br />
Esses estudos apontam, enfim, para a enorme diversida<strong>de</strong> das formas <strong>de</strong> organização social no Brasil,<br />
para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mais pesquisas e, sobretudo, para a importância em se tratar o parentesco como uma<br />
espécie <strong>de</strong> razão pertinente, mas sempre negociada a partir <strong>de</strong> valores mais gerais, como os que articulam o jogo<br />
entre a casa e a rua (DaMATTA, op. cit., p. 130), parentesco e religião (BRANDÃO 1993, p. 26), parentesco e<br />
i<strong>de</strong>ologia (ARAGÃO, 1982, p. 92).<br />
2 A proposta geral <strong>de</strong> etnografar formas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser vista aqui como um projeto maior, análogo a<br />
outros que orientam a confecção <strong>de</strong> etnografias <strong>de</strong>ntro da Antropologia. O presente capítulo é uma tentativa<br />
própria <strong>de</strong>stinada a ilustrar a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal projeto com base no pensamento simmeliano. A propósito,<br />
consi<strong>de</strong>ro um exemplo privilegiado <strong>de</strong> etnografias que vão nessa direção o texto <strong>de</strong> Maldonado (1994). Nele, a