O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
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Voltando aos dois universos temáticos acima discutidos, (A) o domínio das relações<br />
jocosas e (B) o domínio do dom, recordo que, neste capítulo, a sociabilida<strong>de</strong> ilhoa –<br />
focalizada a partir dos espaços sociais locais (freguesia, vizinhança, ensaios da banda,<br />
novenas, festas), dos tempos e eventos rituais significativos (festas do Divino, pesca da tainha,<br />
eleições), das agressões performáticas (jocosida<strong>de</strong> verbal, rivalida<strong>de</strong> entre grupos), dos<br />
mecanismos <strong>de</strong> troca e quitação <strong>de</strong> dádivas/dívidas (votos, favores, ajudas), das relações<br />
clientelistas e do significado das promessas, e, finalmente, das próprias falas nativas sobre o<br />
outro, seja o camarada, o político, o morador <strong>de</strong> fora ou o próprio santo – remete-nos a certas<br />
formas básicas e recorrentes <strong>de</strong> interação social, todas embebidas umas nas outras, <strong>de</strong> modo<br />
que não se po<strong>de</strong> separá-las a não ser analiticamente. Estas formas básicas traduzem relações<br />
explicitas <strong>de</strong> jocosida<strong>de</strong>, rivalida<strong>de</strong>, cooperação, hierarquia e troca <strong>de</strong> dádivas e dívidas. Estas<br />
formas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> sugeriram a indagação fundamental relativamente à lógica que as<br />
engloba.<br />
Tentei mostrar que a sociabilida<strong>de</strong> do ilhéu po<strong>de</strong> ser traduzida pela lógica da<br />
reciprocida<strong>de</strong> e da obrigação <strong>de</strong> dar, receber e retribuir. Neste sentido, as formas locais <strong>de</strong><br />
interação <strong>de</strong>scritas ao longo <strong>de</strong>ste capítulo constituem registros diversos <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> no<br />
sentido do dom. Assim, a jocosida<strong>de</strong> do ilhéu po<strong>de</strong> vista como dom agonístico das palavras e<br />
dos gestos, enquanto que a rivalida<strong>de</strong> admitiria a relação performática entre os “bons<br />
inimigos”. Os esquemas <strong>de</strong> mutualida<strong>de</strong> e cooperação implicados nas chamadas “socieda<strong>de</strong>s”<br />
nativas, registrariam formas <strong>de</strong> dádiva-partilha em que a dívida aproxima-se do débito, seja<br />
com a festa, com o santo, ou mesmo com o vizinho. Ao mesmo tempo, as relações<br />
clientelistas – que traduzem a horizontalida<strong>de</strong> dos favores e a verticalida<strong>de</strong> das graças –<br />
po<strong>de</strong>riam visualizar o dom hierárquico, dom cuja dívida é estruturalmente <strong>de</strong>sigual, como fica<br />
patente no batismo católico, em que o afilhado torna-se um <strong>de</strong>vedor eterno do seu padrinho<br />
por este ter-lhe propiciado ritualmente o dom da vida.