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O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina

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202<br />

Ao fixar-me nos dados etnográficos locais, percebo no ato das “promessas” uma<br />

figuração exemplar e quase total do sistema da dádiva. Lembro que, na teoria maussiana da<br />

dádiva, o dom não se reduz a presentes, mas a toda forma <strong>de</strong> prestações que chancelam o<br />

vínculo da obrigação <strong>de</strong> dar, receber e retribuir. A noção <strong>de</strong> dádiva, sendo não apenas<br />

presente, engloba os convites, visitas, festas, favores, sacrifícios, promessas, tributos e até<br />

mesmo veneno. Tendo em vista as representações simbólicas e práticas sociais em torno das<br />

promessas no mundo mediterrânico-latino-católico, gostaria <strong>de</strong> sugerir que, sendo ao mesmo<br />

tempo um ato sacrificial, um objeto material e uma forma <strong>de</strong> cancelar dívidas para recriar<br />

outras, as promessas confeririam um principio ético básico para o reconhecimento ou negação<br />

da continuida<strong>de</strong> das relações <strong>de</strong> troca, tanto horizontais (entre homens) quanto (verticais)<br />

entre estes e a divinda<strong>de</strong>.<br />

No caso ilhéu, o ato <strong>de</strong> fazer e pagar promessas representa uma mesma concepção que<br />

informa duas atitu<strong>de</strong>s. A primeira, vertical, é quando o <strong>de</strong>voto cancela publicamente suas<br />

dívidas (dádivas) divinas, pagando a promessa <strong>de</strong>vida ao santo por meio da festa do Divino:<br />

Altamiro – Quando chega a Festa do Divino, é hora <strong>de</strong> pagar a promessa, porque a pessoa foi<br />

compensada, porque o filho ficou doente e ficou bom, a graça foi alcançada. Então ele paga,<br />

não fica <strong>de</strong>vendo mais nada, pagou a promessa.<br />

A segunda atitu<strong>de</strong>, horizontal, é quando o <strong>de</strong>vedor cancela ou reconhece, sob várias<br />

formas públicas e privadas, seu déficit <strong>de</strong> favores obtidos nas relações <strong>de</strong> tipo clientelistas,<br />

mantendo-se assim “fiel” à continuida<strong>de</strong> da relação <strong>de</strong> troca com o fornecedor <strong>de</strong> dívidas<br />

(dádivas):<br />

Marilena – Uma mão lava a outra. Tô zerando. Tô pagando aquele favor que tu me fizesse.<br />

Isso é forte. É uma regra. Mas tem muitos que não reconhecem e não lavam as mãos.<br />

Jair – Durante o ano todo, ele [o intermediário] reven<strong>de</strong> o peixe pra o pescador. Então ele tem<br />

que vir buscar qualquer peixe que o pescador mata. É produção garantida. Ele já tem isso aí<br />

porque, quando ele precisar <strong>de</strong> dinheiro pra comprar uma re<strong>de</strong>, quando dá um problema, como

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