O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
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Ao fixar-me nos dados etnográficos locais, percebo no ato das “promessas” uma<br />
figuração exemplar e quase total do sistema da dádiva. Lembro que, na teoria maussiana da<br />
dádiva, o dom não se reduz a presentes, mas a toda forma <strong>de</strong> prestações que chancelam o<br />
vínculo da obrigação <strong>de</strong> dar, receber e retribuir. A noção <strong>de</strong> dádiva, sendo não apenas<br />
presente, engloba os convites, visitas, festas, favores, sacrifícios, promessas, tributos e até<br />
mesmo veneno. Tendo em vista as representações simbólicas e práticas sociais em torno das<br />
promessas no mundo mediterrânico-latino-católico, gostaria <strong>de</strong> sugerir que, sendo ao mesmo<br />
tempo um ato sacrificial, um objeto material e uma forma <strong>de</strong> cancelar dívidas para recriar<br />
outras, as promessas confeririam um principio ético básico para o reconhecimento ou negação<br />
da continuida<strong>de</strong> das relações <strong>de</strong> troca, tanto horizontais (entre homens) quanto (verticais)<br />
entre estes e a divinda<strong>de</strong>.<br />
No caso ilhéu, o ato <strong>de</strong> fazer e pagar promessas representa uma mesma concepção que<br />
informa duas atitu<strong>de</strong>s. A primeira, vertical, é quando o <strong>de</strong>voto cancela publicamente suas<br />
dívidas (dádivas) divinas, pagando a promessa <strong>de</strong>vida ao santo por meio da festa do Divino:<br />
Altamiro – Quando chega a Festa do Divino, é hora <strong>de</strong> pagar a promessa, porque a pessoa foi<br />
compensada, porque o filho ficou doente e ficou bom, a graça foi alcançada. Então ele paga,<br />
não fica <strong>de</strong>vendo mais nada, pagou a promessa.<br />
A segunda atitu<strong>de</strong>, horizontal, é quando o <strong>de</strong>vedor cancela ou reconhece, sob várias<br />
formas públicas e privadas, seu déficit <strong>de</strong> favores obtidos nas relações <strong>de</strong> tipo clientelistas,<br />
mantendo-se assim “fiel” à continuida<strong>de</strong> da relação <strong>de</strong> troca com o fornecedor <strong>de</strong> dívidas<br />
(dádivas):<br />
Marilena – Uma mão lava a outra. Tô zerando. Tô pagando aquele favor que tu me fizesse.<br />
Isso é forte. É uma regra. Mas tem muitos que não reconhecem e não lavam as mãos.<br />
Jair – Durante o ano todo, ele [o intermediário] reven<strong>de</strong> o peixe pra o pescador. Então ele tem<br />
que vir buscar qualquer peixe que o pescador mata. É produção garantida. Ele já tem isso aí<br />
porque, quando ele precisar <strong>de</strong> dinheiro pra comprar uma re<strong>de</strong>, quando dá um problema, como