O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
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possibilida<strong>de</strong> (paradoxal) que o doador teria para aumentar a liberda<strong>de</strong> do donatário em<br />
retribuir ou não a dívida, diminuindo assim a obrigação convencional <strong>de</strong> retribuir, mas<br />
aumentando a confiança no vínculo que se quer prezar? Mauss já observara que na Kula, “ a<br />
pessoa dá como se não fosse nada, o doador mostra uma modéstia exagerada (KARSENTI<br />
apud GODBOUT, 2002, p. 75). Nossas fórmulas <strong>de</strong> cortesia também têm o mesmo sentido:<br />
<strong>de</strong> rien, <strong>de</strong> nada, my pleasure. Leforf (1979 [1951]) também observou que “não fazemos dons<br />
para sermos retribuídos, mas para que o outro faça seu dom”. E Mary Douglas (apud<br />
GODBOUT, op. cit., p. 80), chama atenção para o fato <strong>de</strong> que o chamado free-gift (dom<br />
unilateral) não seria <strong>de</strong>finido pela ausência <strong>de</strong> retribuição mas, pela ausência <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
retribuição, ou, mais precisamente, pela sua recusa. Parece haver, portanto, na teoria do dom,<br />
uma fonte <strong>de</strong> mal-entendidos entre a observação do que circula e a significação do que<br />
circula. Haveria, então, uma incerteza estrutural no sistema do dom, um risco permanente que<br />
torna a retribuição do outro incerta. Esta incerteza afastaria os agentes trocadores o mais<br />
possível do outro sistema fundado no contrato, na regra do mercado, baseada na equivalência<br />
e na liquidação da dívida, ou na moral do <strong>de</strong>ver 33 . Essa parece ser a resposta maussiana.<br />
Essa pequena discussão prévia sobre a dádiva foi necessária para reintroduzir o meu<br />
tema etnográfico neste ambiente, ou melhor dizendo, na linguagem da dádiva. A questão da<br />
intencionalida<strong>de</strong> do agente trocador é fundamental nesta linguagem da dádiva e a idéia é fazer<br />
um contraponto a partir da análise <strong>de</strong> um aspecto primordial <strong>de</strong> toda a <strong>de</strong>scrição anterior que<br />
Acessado em 10.02.2002. Ver também SIGAUD (1999). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?<br />
script=sci_arttext&pid=S010493131999000200004&lng=pt&nrm=iso. Acessado em 26.02.2002.<br />
33 Essas discussões têm sido levantadas recentemente por autores como Alain Caillé (1998), que tem procurado<br />
associar o pensamento e as <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> Mauss à existência <strong>de</strong> um novo “paradigma”, ao lado do<br />
individualismo metodológico, do holismo sociológico e do interacionismo simbólico. Conforme o autor e outros<br />
integrantes do M.A.U.S.S. (nota anterior), os sistemas <strong>de</strong> dom não po<strong>de</strong>m ser explicados nem pelo<br />
individualismo metodológico (a idéia <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> instrumental e <strong>de</strong> otimização <strong>de</strong> preferências), nem pelo<br />
holismo sociológico (a idéia <strong>de</strong> interiorização <strong>de</strong> normas, <strong>de</strong> regras universais, <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>). Postulam, assim,<br />
um novo “paradigma” que estaria fundado na dádiva. Quando <strong>de</strong>compõem a dádiva em obrigação, interesse,<br />
doação e prazer (cf. CAILLÉ, 1998, p. 23, versão online), os autores do movimento fornecem o argumento, hoje<br />
crucial, <strong>de</strong> que toda teoria da socieda<strong>de</strong> necessita <strong>de</strong> um postulado psicológico (GODBOUT, 2002, p. 80). Estas<br />
discussões merecem estudos futuros, mas uma tentativa <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong>stas idéias encontra-se em um estudo