O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
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Bombinhas, que há “socieda<strong>de</strong>s” efêmeras, como as da farra do boi, e “socieda<strong>de</strong>s”<br />
permanentes como a dos “camaradas” da pesca, no Pântano do Sul. Há também outras<br />
“socieda<strong>de</strong>s”, como a “socieda<strong>de</strong> da sauda<strong>de</strong>”, no Ribeirão da Ilha, que criou um seguro<br />
comunitário para <strong>de</strong>spesas com funeral. Também não há farra do boi em que não impere os<br />
insultos verbais, o brincar <strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r, a fluência da mentira, algo que se vê diariamente nas<br />
ruas, nos botecos, nos jogos <strong>de</strong> dominó, nas conversas dos pescadores no rancho, nos jogos <strong>de</strong><br />
futebol, nos bingos etc. Não há farras também sem que o território seja <strong>de</strong>marcado por intensa<br />
rivalida<strong>de</strong> entre as comunida<strong>de</strong>s, algo tão po<strong>de</strong>roso que faz com que as comissões<br />
organizadoras da Igreja, na hora das festas religiosas, distribuam as barracas entre todas as<br />
comunida<strong>de</strong>s, para não haver <strong>de</strong>sentendimentos. Em 2001 (já na pesquisa para o doutorado),<br />
entrevistei Jair, 45 anos, pescador e comerciante, graduado em historia e praticante da farra<br />
do boi. Esse aspecto “anárquico” da socieda<strong>de</strong> dos farristas lhe pareceu explicar o porquê <strong>de</strong><br />
tantos ataques contra os farristas:<br />
Jair - Eu acho que o que incomoda mais esse pessoal e as autorida<strong>de</strong>s é a forma anárquica que<br />
é a farra do boi. No sentido <strong>de</strong> que ninguém leva lucro com isso. Aliás, as pessoas só têm<br />
prejuízos: tem que pagar o boi, não tem entrada, cada um po<strong>de</strong> entrar, ninguém tá levando<br />
lucro, o Estado não tá levando lucro, não é um evento que traz gran<strong>de</strong> dinheiro para o<br />
município, enfim, pra alguém, pra dois ou três. Parece que é isso. Ela [a farra] requer muito<br />
espaço, muita correria, muita gritaria. Ela revoluciona por alguns dias o status quo que é uma<br />
coisa <strong>de</strong> silêncio, tranqüilida<strong>de</strong>, não sei o quê. A farra do boi é uma coisa <strong>de</strong> barulho, um<br />
carnaval, é uma coisa <strong>de</strong> tirar o sono, porque é <strong>de</strong> noite, <strong>de</strong> dia, não tem hora; ela incomoda<br />
essas pessoas. O que incomoda é isso.<br />
Será em torno <strong>de</strong>ste ethos particular, no sentido <strong>de</strong> perguntar “Como eles são<br />
socialmente? Como interagem?”, que esta seção tratará, ampliando a pesquisa <strong>de</strong> campo<br />
anterior. Conforme visto na introdução, embora a pesquisa <strong>de</strong> campo tenha tomado o sul da<br />
Ilha <strong>de</strong> <strong>Santa</strong> <strong>Catarina</strong> como espaço central <strong>de</strong> investigação, tomei toda a Ilha e litoral<br />
fronteiriço como locus <strong>de</strong>sta pesquisa. Neste sentido, não há aqui um estudo etnográfico<br />
pormenorizado <strong>de</strong> uma “comunida<strong>de</strong>”. Dediquei-me a explorar, em todo o território, as