O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
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profano, entre a or<strong>de</strong>m e a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m. Assim, nessa abordagem – que tem na sociologia<br />
durkheimiana seu nascedouro – os ritos, embora representassem uma força efervescente na<br />
socieda<strong>de</strong>, teriam sua explicação ancorada em “mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> equilíbrio”. Em outras palavras, as<br />
formas rituais ou os sistemas expressivos em geral apareceriam como epifenômenos <strong>de</strong> uma<br />
totalida<strong>de</strong> orgânica e funcional, a dizer, a socieda<strong>de</strong>. Eles só adquiririam sentido como<br />
representações cuja interpretação estaria <strong>de</strong>terminada exteriormente por algo po<strong>de</strong>rosamente<br />
ausente. O rito seria então uma mensagem distorcida, estranha e invertida <strong>de</strong> uma eterna<br />
sauda<strong>de</strong> da or<strong>de</strong>m. Ora, essa tradição <strong>de</strong> abordagem é capaz <strong>de</strong> revelar, por exemplo, os<br />
mecanismos estruturais <strong>de</strong> inversão e transgressão (veja o caso do carnaval como mascarada).<br />
No entanto, essa revelação se daria enquanto antítese episódica <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> irrecorrível<br />
que lhe seria absoluta e exterior: a socieda<strong>de</strong>, a civilização, a estrutura, a or<strong>de</strong>m, a norma.<br />
Estas seriam as realida<strong>de</strong>s finais e explicativas por on<strong>de</strong> o rito, enquanto fenômeno ligado ao<br />
mundo da expressivida<strong>de</strong>, se apresentaria inelutavelmente como a sua dimensão reflexiva.<br />
Mas se perguntássemos simplesmente: o que os ritos, eles mesmos, narram como produtores<br />
<strong>de</strong> sentido? A performance ritual não seria ela mesma, uma performance cultural? Enfim, não<br />
estaria o ritual ou qualquer sistema expressivo (poesia, pintura, procissões, festas etc.)<br />
submetido a duas possíveis chaves interpretativas, isto é, uma que i<strong>de</strong>ntificaria os sistemas<br />
expressivos como um teatro sob o real (representação alegórica) e outra que os i<strong>de</strong>ntificaria<br />
como um teatro sobre o real (apresentação tautegórica) 8 ?<br />
7 A relação entre a obra <strong>de</strong> Simmel e a Antropologia foi objeto <strong>de</strong> recente coletânea, organizada em<br />
Teixeira (2000).<br />
8 Dante, ao referir-se à leitura das Escrituras Sagradas, apontava o sentido alegórico como o mais importante<br />
para o poeta e o teólogo: “o que se escon<strong>de</strong> sob o manto <strong>de</strong>stas fábulas, é uma verda<strong>de</strong> oculta sob bela mentira”<br />
(DANTE apud , apud ALEGORIA, 1982:22). Na Ida<strong>de</strong> Média, a alegoria tornou-se o modo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a função<br />
da arte, especialmente da poesia. Dante <strong>de</strong>finia assim a tarefa do poeta: “Vergonha seria para aquele que<br />
rimasse coisas sob veste <strong>de</strong> figura ou <strong>de</strong> côr retórica, e <strong>de</strong>pois interrogado, não soubesse <strong>de</strong>snudar as suas<br />
palavras <strong>de</strong> tal veste, <strong>de</strong> modo que tivessem real entendimento” (op. cit, p. 22). Veja que nesse caso, o esforço<br />
<strong>de</strong> tradução do Outro é feito em nome <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> que se busca <strong>de</strong>s-cobrir – “sob o manto <strong>de</strong>stas fábulas” –<br />
para além das coisas, fatos e pessoas <strong>de</strong> que trata. Por sua vez, no mo<strong>de</strong>lo tautegórico, a linguagem, as artes e o<br />
drama têm vida própria, por não estarem subordinados às exigências <strong>de</strong> um esquema conceitual superior a que<br />
<strong>de</strong>veriam dar corpo ou “real entendimento”. O mo<strong>de</strong>lo conduz à tradução do Outro não pela neutralização do<br />
significante (coisas, fatos, pessoas), mas remete à irredutibilida<strong>de</strong> do Mesmo, em nome <strong>de</strong> sua autonomia <strong>de</strong>