30.10.2014 Views

O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina

O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina

O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

75<br />

Ainda jovem e, no seio do ambiente familiar, uma avó contou-nos porque motivo o nosso avô,<br />

seu marido, não estava presente. Tinha fugido para a América. Tinha embarcado numa<br />

baleeira. Nos anos que se seguiram, o nosso contacto com o mar, ponto <strong>de</strong> partida, e as baías,<br />

ponto <strong>de</strong> chegada, eram diários. Aprofundamos assim uma intimida<strong>de</strong> que tomava contornos<br />

doentios. Nos anos após a guerra, o Porto da Horta era visitado por navios das mais variadas<br />

nacionalida<strong>de</strong>s, e por perto andávamos, vendo e ouvindo, guiando e orientando os que,<br />

<strong>de</strong>sconhecedores do meio, necessitavam <strong>de</strong> ajuda para chegar ao <strong>de</strong>stino há muito<br />

programado. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> fugir, ir para a América, não sendo uma necessida<strong>de</strong> pois os pais e<br />

irmãos asseguravam uma existência normal, era uma exigência natural. Anos mais tar<strong>de</strong>, a<br />

família <strong>de</strong>smembrou-se, um para Lisboa, os outros para a América e nós ficamos acorrentados<br />

por obrigações militares. Finalmente, chegado o dia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos partir e assim nos unirmos<br />

<strong>de</strong> novo à família, lá fomos em companhia da nossa mulher e do nosso filho. Tínhamos<br />

casado. Conosco levávamos na mala o certificado <strong>de</strong> óbito <strong>de</strong> toda a família. A partir <strong>de</strong> então<br />

faríamos parte das gerações <strong>de</strong>saparecidas. No Faial, a nossa família tinha pura e<br />

simplesmente sido erradicada. Mas íamos felizes. Finalmente partíamos para a América. A<br />

terra pela qual um avô que nunca conheci, abandonou toda a sua família, nunca mais dando<br />

sinal <strong>de</strong> vida. Juntos <strong>de</strong> novo, iniciamos um ciclo <strong>de</strong> vida em que a oferta <strong>de</strong> bens materiais se<br />

impunha às priorida<strong>de</strong>s emocionais, o trabalho ocupava agora espaços que antes eram<br />

<strong>de</strong>dicados a prazeres do lazer. A saú<strong>de</strong> embora continuasse a ser condição essencial, já não<br />

era a primordial, essa estava agora reservada ao trabalho. Os dólares que nos facilitavam a<br />

ambição presente, começavam então a alicerçar o futuro. Regressar. Porquê e para quê? Com<br />

os objetivos traçados e rumos pré-<strong>de</strong>finidos, a <strong>de</strong>cisão final não podia ser circunstancial. Com<br />

um filho já adulto e em outro oceano vivendo, ao nosso redor tínhamos uma filha em ida<strong>de</strong><br />

escolar. De nascimento americana, havia que respeitar os seus direitos. Tínhamos tido o<br />

cuidado <strong>de</strong> em companhia da mãe, mandá-la passar férias aos Açores. Vinha para a ilha do<br />

Pico, on<strong>de</strong> também começou a fazer amiza<strong>de</strong>s. Um ano antes da <strong>de</strong>cisão final <strong>de</strong> regresso,<br />

veio <strong>de</strong> novo acompanhada pela mãe para freqüentar a escola e certificar-se <strong>de</strong> que queriam<br />

viver cá. O dia chegou. Não sem alguma mágoa nos separávamos da família original,<br />

seguíamos agora o nosso rumo. Os que ficaram estavam felizes, e nós que partíamos,<br />

levávamos na bagagem uma certidão <strong>de</strong> renascimento coletivo, embora não fossemos dar<br />

início a uma nova vida, íamos com certeza procurar reiniciar on<strong>de</strong> tínhamos largado, numa<br />

terra conhecida, mas num ambiente estranho. As ativida<strong>de</strong>s que numa juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> vime<br />

ver<strong>de</strong>, nos proporcionaram momentos <strong>de</strong> crescimento e aventura, iam agora dar lugar a<br />

idênticas ativida<strong>de</strong>s, em que o vime, estando seco, amadurecido, ia viver tudo o que a<br />

natureza lhe oferecia. Assim, regressei ao mar, aos barcos à vela, à pesca submarina e às<br />

subidas à montanha.<br />

Esta narrativa é emblemática <strong>de</strong> muitos açorianos que um dia sonharam com a<br />

“América” e lá apren<strong>de</strong>ram a sonhar com os “Açores”. Seu tom é biográfico, emocional. Tem<br />

uma tristeza serena, um mote <strong>de</strong> re-partidas que nunca terminam e uma consciência <strong>de</strong><br />

amplitu<strong>de</strong> situada no terreno da ambigüida<strong>de</strong>. Segundo alguns autores pós-mo<strong>de</strong>rnos, a<br />

experiência diaspórica seria marcada pela ambigüida<strong>de</strong> pelas contradições <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>s entre<br />

a “home” e a “location” (CLIFFORD, 1997), criando a condição <strong>de</strong> um sujeito “unhomed”<br />

(BHABHA, 1994). No entanto, a história <strong>de</strong> vida acima relatada, mostra como esta condição

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!