O Atlântico Açoriano - Musa - Universidade Federal de Santa Catarina
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um conjunto por referência ao conjunto” (p. 118), ou que a hierarquia “não é uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
comandos superpostos ou <strong>de</strong> seres <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong>crescente, nem uma árvore taxonômica,<br />
mas uma relação que po<strong>de</strong>mos chamar sucintamente <strong>de</strong> englobamento do contrário” (op. cit.,<br />
p. 370). Dumont usa um exemplo que me pareceu esclarecedor:<br />
Deus criou primeiro Adão, ou seja, o homem indiferenciado, protótipo da espécie<br />
humana. Depois, numa segunda etapa, extraiu <strong>de</strong> algum modo, <strong>de</strong>sse ser<br />
indiferenciado um ser <strong>de</strong> sexo diferente (...) Nessa curiosa operação, Adão mudou,<br />
em suma, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, ao mesmo tempo que aparecia um ser que é membro da<br />
espécie humana e diferente do representante principal <strong>de</strong>ssa espécie. Adão ou, em<br />
nossa linguagem, o homem, é duas coisas ao mesmo tempo: o representante da<br />
espécie humana e o protótipo masculino <strong>de</strong>ssa espécie. Num primeiro nível, homem<br />
e mulher são idênticos; num segundo nível, a mulher é o oposto ou o contrário do<br />
homem. Estas duas relações, tomadas em conjunto, caracterizam a relação<br />
hierárquica, a qual não po<strong>de</strong> ser melhor simbolizada do que pelo englobamento<br />
material da primeira Eva no corpo do primeiro Adão. Esta relação hierárquica é, em<br />
termos muito gerais, a que existe entre um todo (ou um conjunto) e um elemento<br />
<strong>de</strong>sse todo: o elemento faz parte do conjunto, é-lhe, nesse sentido, consubstancial ou<br />
idêntico e, ao mesmo tempo, distingue-se <strong>de</strong>le ou opõe-se-lhe (...) É o que <strong>de</strong>signo<br />
como ‘englobamento do contrário’ (Dumont, 2000[1983], p. 129).<br />
No caso das “socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> camaradas” do Pântano do Sul, a idéia é basicamente<br />
reiterar com Lanna (1995) e Maldonado (1993) que, conforme visto nos relatos acima, a<br />
retórica igualitária entre os camaradas está conjugada a relações hierárquicas estruturadoras e,<br />
portanto, englobadoras da armação <strong>de</strong> tais socieda<strong>de</strong>s, gerando o regime distributivo dos bens<br />
(peixes), funções (vigia, remeiro, patrão etc) e serviços (assistência às viúvas) da socieda<strong>de</strong>.<br />
4.3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Antes <strong>de</strong> avançar teoricamente, gostaria <strong>de</strong> dizer que, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma<br />
etnografia dos rituais nativos (v. Cap. 3), três eventos rituais emblemáticos aparecem na<br />
sociabilida<strong>de</strong> e na cultura do ilhéu, açoriano-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte: a farra do boi, ligada ao mundo da<br />
diversão, do ócio e do sacrifício animal; o culto-festa do Divino, ligado ao mundo mágico-<br />
29 Além da resenha mencionada, remeto o leitor às seguintes etnografias: Kant <strong>de</strong> Lima & Pereira (1997); Caldas<br />
Brito (1998); Maldonado (1994). No caso da Ilha <strong>de</strong> <strong>Santa</strong> <strong>Catarina</strong>, o único e ainda pioneiro estudo (<strong>de</strong><br />
antropologia econômica) sobre as “socieda<strong>de</strong>s dos camaradas” da pesca é o <strong>de</strong> Beck (1984).