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Cartas do CárCere - Estaleiro Editora

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26/XII/1927<br />

(Carta 33)<br />

Queridíssima tania,<br />

e assim passou também a festa <strong>do</strong> Natal, que imagino o trabalhosa<br />

que deveu ser para ti. Na verdade, pensei no seu caráter<br />

extraordinário apenas deste ponto de vista, o único que<br />

me pu<strong>do</strong> interessar. Nom houvo nada destacável, salvo umha<br />

geral tensom <strong>do</strong>s ánimos em to<strong>do</strong> o ambiente <strong>do</strong> cárcere; podia-se<br />

notar como o fenómeno se vinha gestan<strong>do</strong> desde havia<br />

umha semana inteira. to<strong>do</strong>s esperavam algo excecional, e a<br />

espera determinava toda umha série de pequenas manifestaçons<br />

típicas que davam no conjunto esta impressom de um<br />

pulo vital. Para muitos, a exceçom era umha porçom de pasta<br />

asciutta e um quartel de vinho que a administraçom passa três<br />

vezes por ano, em vez da habitual sopa: mas que acontecimento<br />

importante é este, contu<strong>do</strong>. Nom creias que me divirto ou<br />

que me rio disto. teria-o feito, se calhar, antes de ter passa<strong>do</strong><br />

a experiência <strong>do</strong> cárcere. Mas vim demasiadas cenas comove<strong>do</strong>ras<br />

de presos que comiam o seu prato de sopa com religioso<br />

pesar, arrepanhan<strong>do</strong> com a miga de pam até o último<br />

rasto de preve que pudesse ficar cola<strong>do</strong> à louça! Um deti<strong>do</strong><br />

chorou porque num quartel <strong>do</strong>s guardas, onde estávamos de<br />

passagem, em lugar da sopa regulamentar distribuírom apenas<br />

umha porçom dupla de pam; desde havia <strong>do</strong>us anos estava<br />

no cárcere e a sopa quente era para ele o seu sangue, a sua<br />

vida. entende-se porque o Pai Nosso pom o acento no pam<br />

de cada dia.<br />

Pensei na tua bondade e na tua abnegaçom, querida tania.<br />

Mas a jornada decorreu um pouco como todas as demais.<br />

se calhar, parolámos menos e limos mais. eu lim um livrinho<br />

de Brunetière sobre Balzac, umha espécie de castigo para<br />

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