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Cartas do CárCere - Estaleiro Editora

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27 de fevereiro de 1928<br />

(Carta 37)<br />

Queridíssima Giulia,<br />

recebim a tua carta <strong>do</strong> 26-XII-1927, com a apostila de 24 de<br />

janeiro e a notinha anexa. Fum mesmo feliz por receber estas<br />

cartas tuas. Mas desde havia algum tempo já conseguira<br />

estar mais tranquilo. Mudei muito em to<strong>do</strong> este tempo. Certos<br />

dias acreditei que me convertera num ser apático e inerte.<br />

Hoje penso que errei na análise de mim mesmo. Igualmente,<br />

também nom acredito que estivesse desorienta<strong>do</strong>. tratava-se<br />

de umha crise de resistência a umha nova maneira de viver,<br />

que se impunha implacavelmente pola pressom de to<strong>do</strong> o ambiente<br />

carcerário, com as suas normas, com a sua rotina, com<br />

as suas privaçons, com as suas necessidades, um complexo<br />

enorme de pequeníssimas cousas que se sucedem de maneira<br />

mecánica durante dias, durante messes, durante anos, sempre<br />

iguais, sempre com o mesmo ritmo, como os graos de areia<br />

de umha gigantesca clepsidra. to<strong>do</strong> o meu organismo físico e<br />

psíquico opunha-se tenazmente, com cada molécula, à absorçom<br />

deste ambiente exterior, mas era necessário de quan<strong>do</strong><br />

em vez reconhecer que umha certa quantidade da pressom<br />

conseguira vencer a resistência e modificara umha certa zona<br />

de mim mesmo, e entom verificava-se um abalo rápi<strong>do</strong> e total,<br />

para rejeitar de um golpe o invasor. Hoje, to<strong>do</strong> um ciclo de<br />

mudanças se tem desenvolvi<strong>do</strong>, porquanto cheguei à decisom<br />

calma de nom me opor, com os meios e nas maneiras de antes,<br />

que eram ineficazes e ineptos, àquilo que é necessário e<br />

inelutável, mas de <strong>do</strong>minar e controlar, com um certo espírito<br />

irónico, o processo em curso. de resto, convencim-me de que<br />

nunca chegarei a ser um perfeito filisteu. em qualquer momento<br />

serei capaz, com um abalo, de deitar fora a pele, meio<br />

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