19.04.2013 Views

A Noite Maldita - Crônicas do Fim do Mundo - Multi Download

A Noite Maldita - Crônicas do Fim do Mundo - Multi Download

A Noite Maldita - Crônicas do Fim do Mundo - Multi Download

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

fazen<strong>do</strong>-o sentar-se à beira da cama. Cássio coçou a cabeça e olhou para o quarto vazio e<br />

frio. A janela escura, indican<strong>do</strong> que a noite ainda reinava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora. O homem<br />

levantou-se e cambaleou até a porta <strong>do</strong> banheiro. Resmungou quan<strong>do</strong> acendeu a luz, os<br />

olhos demoraram a se acostumar com a claridade. Fez a barba em frente ao espelho,<br />

repensan<strong>do</strong> o dia. Bateu o barbea<strong>do</strong>r na pia, limpan<strong>do</strong> as lâminas debaixo <strong>do</strong> jato da<br />

torneira, percorreu embaixo <strong>do</strong> queixo com ele e fez uma careta. Um corte. Bem<br />

pequenino, mas daqueles ardi<strong>do</strong>s e irritantes. Enxaguou o rosto e o secou. Ligou a<br />

cafeteira e apanhou o livro da vez. Enquanto o café passava, lia mais um trecho de O<br />

eleito senta<strong>do</strong> no vaso sanitário. Estava de queixo caí<strong>do</strong> com aquele livro, cheio daqueles<br />

clichês de novela, acompanhan<strong>do</strong> a saga <strong>do</strong> menino chama<strong>do</strong> de “pequeno dragão” por<br />

Thomas Mann. Quan<strong>do</strong> voltou para a cozinha, sua xícara de café já estava lá, destilan<strong>do</strong><br />

a deliciosa fragrância da bebida. Tomou alguns goles quentes, passan<strong>do</strong> os olhos pelo<br />

livro, e ainda bebia da xícara enquanto ajeitava sua farda na mochila.<br />

Quan<strong>do</strong> abriu a porta de casa o frio da madrugada abraçou-lhe o corpo, fazen<strong>do</strong>-o<br />

detestar novamente ter que levantar tão ce<strong>do</strong>. Fechou a porta e a trancou, enfian<strong>do</strong> a<br />

chave no bolso <strong>do</strong> jeans. Parou no meio <strong>do</strong> quintal olhan<strong>do</strong> para a casa da frente,<br />

completamente silenciosa. Sua irmã, agora desempregada, só acordaria por volta das seis<br />

e meia da manhã para levar as crianças à escola estadual, que era logo ali perto. Olhou<br />

também para o alto. O céu limpo e escuro, salpica<strong>do</strong> de estrelas; a alta torre de telefonia<br />

celular fazen<strong>do</strong> seu trabalho silencioso. Cássio deixou a casa às cinco e cinco da manhã,<br />

como fazia em toda jornada de trabalho. A rotina não era algo que o incomodava.<br />

Quan<strong>do</strong> se trabalha como sargento, monotonia não é uma coisa ruim. Novidade em um<br />

dia de trabalho podia significar um tiroteio, um confronto com uma turba revoltosa em<br />

dia de reintegração de posse, pauladas e pedradas. Gostava da rotina. Tinha escolhi<strong>do</strong><br />

para si a rotina. Melhor <strong>do</strong> que mudar de casa a cada quatro meses. Melhor <strong>do</strong> que não<br />

ter ideia de em qual colégio iria estudar ou se teria ou não almoço no dia seguinte. Sabia<br />

muito bem que eram culpa de sua infância agitada as suas escolhas de uma vida mais<br />

ordinária e repetitiva. Um eco perpétuo no seu pensamento. Como se rodasse um<br />

programa no seu inconsciente que o fizesse sempre tomar decisões que o mantivessem<br />

dentro de uma zona de estabilidade e não voltasse a se confrontar com as penúrias que<br />

tinha encara<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> pequeno. Se casasse e tivesse filhos um dia, não queria que os<br />

pequenos não tivessem amigos, não tivessem uma escola fixa ou que perdessem<br />

brinque<strong>do</strong>s que eram deixa<strong>do</strong>s para trás em mudanças de endereços feitas às pressas,<br />

repentinas, executadas na calada da noite, fugin<strong>do</strong> com os pais de cobra<strong>do</strong>res e senhorios<br />

enraiveci<strong>do</strong>s com a falta de pagamento. Assombra<strong>do</strong> pelas lembranças da infância, Cássio<br />

<strong>do</strong>brou a esquina e chegou à avenida onde apanharia o coletivo, sem dar muita atenção

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!