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A Noite Maldita - Crônicas do Fim do Mundo - Multi Download

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possibilidade de a Pinacoteca estar intacta. Assim que cuidasse das vidas que mais lhe<br />

importavam, arranjaria alguém para verificar o esta<strong>do</strong> daquele prédio que tantas vezes o<br />

deixara impressiona<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> podia dava algumas voltas pelos corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> museu,<br />

imaginan<strong>do</strong> as vidas por trás de cada obra. Gostava da sensação que os retratos antigos<br />

lhe proporcionavam. Eram como mensagens lacradas dentro de uma garrafa que flutuara<br />

por anos e anos no mar sem fim, vin<strong>do</strong> dar na costa da retina de seus olhos. Ele lia<br />

naquelas cartas antigas as mesmas variações da mesma mensagem, como “estivemos<br />

aqui”, “existimos”, “somos como você, nos importamos, vivemos e morremos”. Seria<br />

uma tragédia ainda maior deixar aquele tesouro naufragar em desordem. Tirou os<br />

quadros <strong>do</strong> pensamento quan<strong>do</strong> os veículos tomaram a direita e avançaram pela<br />

Tiradentes, descen<strong>do</strong> em senti<strong>do</strong> à Marginal. A chuva continuava, agora mais serena,<br />

contu<strong>do</strong>, o céu ainda trevoso era escravo das nuvens negras. Outro trovão ribombou<br />

atávico, fazen<strong>do</strong> os mais fracos estremecerem. Dentro da Land Rover o som das gotas de<br />

chuva era rei. No segun<strong>do</strong> trovão Rui abaixou a cabeça olhan<strong>do</strong> para o alto, ligan<strong>do</strong> os<br />

faróis da Land Rover.<br />

— Pareceu que agora, além de tu<strong>do</strong>, o céu vai desabar — reclamou.<br />

As guias eram lavadas por uma enxurrada pardacenta que corria de encontro às<br />

bocas-de-lobo. Os vestígios <strong>do</strong>s avisos lança<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ar pelos aviões iam sen<strong>do</strong> lava<strong>do</strong>s e<br />

devora<strong>do</strong>s aos poucos. O que a chuva não conseguia carregar eram os corpos. Os corpos<br />

de homens e mulheres, crianças e velhos, pegos despreveni<strong>do</strong>s durante as horas escuras. A<br />

cada quarteirão avança<strong>do</strong> naquela larga avenida ao menos três cadáveres eram avista<strong>do</strong>s.<br />

Já na Avenida Santos Dumont, Cássio chegou a puxar a direção da Land Rover e a<br />

ordenar que Rui freasse junto ao canteiro central em frente a uma fron<strong>do</strong>sa palmeira,<br />

quan<strong>do</strong> avistou a primeira criança morta. Uma menina, com o tamanho e os cabelos de<br />

Megan, fez o sargento saltar para fora da Land Rover e passar pela enxurrada,<br />

atravessan<strong>do</strong> a calçada cimentada de encontro ao corpo inerte, caí<strong>do</strong> nos primeiros<br />

degraus da passarela junto à praça Bento Camargo Barros. Virou a garota, com a boca<br />

roxa, cianótica. Cássio tremia. Não era ela. Não era sua sobrinha. Ainda assim uma<br />

criança, uma menina. O rasgo no pescoço revelava o assassino. Ela tinha si<strong>do</strong> pega,<br />

devorada, e sua carcaça morta aban<strong>do</strong>nada para apodrecer na rua. O sargento fechou as<br />

pálpebras da infante defunta e deu passos cambaleantes para trás. A sensação que vivia era<br />

perturba<strong>do</strong>ra. Voltou até a Land Rover e, com a voz engasgada, informou que a menina<br />

morta se parecia com sua sobrinha.<br />

A Land Rover voltou a se mexer, seguida pelos ônibus e pelo Urutu. Logo passavam<br />

sobre a Ponte das Bandeiras, e o rio, cheio, corria abaixo <strong>do</strong> comboio. A chuva caía<br />

fraca, ainda assim prejudican<strong>do</strong> a visão. Cássio abriu o vidro <strong>do</strong> passageiro e pediu que

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