19.04.2013 Views

A Noite Maldita - Crônicas do Fim do Mundo - Multi Download

A Noite Maldita - Crônicas do Fim do Mundo - Multi Download

A Noite Maldita - Crônicas do Fim do Mundo - Multi Download

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

CAPÍTULO 65<br />

Mais uma vez, como em tantas outras vezes, era noite sobre aquela terra. O vento e o<br />

frio brincavam juntos, carregan<strong>do</strong> a noite no seu rastro, ziguezaguean<strong>do</strong> pelas linhas.<br />

Uma cidade morta surgiu distante, aproximan<strong>do</strong>-se mais e mais, embalada pelo troar a<br />

diesel. Mesmo ainda longe, riscada no horizonte e marcada pela luz tímida da lua, ela<br />

sabia que a cidade morta ganhava movimento quan<strong>do</strong> os novos mora<strong>do</strong>res começaram a<br />

colocar a cara para fora. Era gente de coração quieto e sangue frio e estraga<strong>do</strong> nas veias.<br />

Gente que precisava de sangue quente e vivo, tira<strong>do</strong> através de feridas na pele <strong>do</strong>s que<br />

<strong>do</strong>rmiam. Eles, os mortos-vivos, caçavam pelas ruas, entran<strong>do</strong> em casas, ouvin<strong>do</strong> atrás<br />

das portas, buscan<strong>do</strong> pela vida cintilante que se escondia dentro de cascas de olhos<br />

fecha<strong>do</strong>s, inermes, gente a<strong>do</strong>rmecida que não adivinhava o que ao re<strong>do</strong>r acontecia. Lá,<br />

através de muros e varan<strong>do</strong> janelas, os vampiros encontravam os corpos deixa<strong>do</strong>s para<br />

trás. Os vampiros venciam barricadas de famílias que tentavam se esconder. Os vampiros<br />

saltavam sobre os vivos e cravavam-lhes os dentes, toman<strong>do</strong> o sangue e ganhan<strong>do</strong> força e<br />

vida clandestina, vida pirata. Quan<strong>do</strong> a lua vencia as nuvens e deixava to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> saber<br />

que era noite, que o parceiro <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> tinha i<strong>do</strong> visitar outras damas, os mortos-vivos<br />

vinham, sem me<strong>do</strong>, às centenas, depois, aos milhares. Aqueles seres de pele pálida e<br />

branca, carrega<strong>do</strong>s de angústia e tristeza pelo aparte, não entendiam por que a vida tinha<br />

lhes da<strong>do</strong> as costas sem que a morte viesse buscá-los ao portão para mostrar o caminho<br />

<strong>do</strong> poço das lágrimas. A eles foi negada a travessia. Eram almas mortas, mas ainda presas<br />

à casca ambulante, física e suscetível, <strong>do</strong>nas de corações estáticos, que se recusavam a<br />

bailar. Perdi<strong>do</strong>s no fúnebre hiato entre o calor e a inexistência. Alguns queriam caixões<br />

para se encerrar, queriam covas e sepulturas para a<strong>do</strong>rmecer e desejavam renegar aquela<br />

existência mórbida e assassina. Sentiam-se esqueci<strong>do</strong>s. Lamentavam uma vida não vivida<br />

que tinham perdi<strong>do</strong>, que tinha lhes passa<strong>do</strong> diante <strong>do</strong>s olhos enquanto corriam para<br />

pagar contas e impostos, enquanto se preocupavam com coisas bobas e sem importância,<br />

enquanto se esqueciam <strong>do</strong> prazer de amar e se deixar amar. Agora aquilo, arrependi<strong>do</strong>s,<br />

desejan<strong>do</strong> o descanso a sete palmos debaixo da terra, com seus corações parti<strong>do</strong>s e<br />

cansa<strong>do</strong>s de viver, eram obriga<strong>do</strong>s a sentar em poltronas rasgadas e decrépitas e assistir ao<br />

teatro horren<strong>do</strong> <strong>do</strong> definhar com os olhos abertos, com os olhos cientes de que o fim já<br />

tinha chega<strong>do</strong>. Então vinha a fome. A fome <strong>do</strong> vivo. Tu<strong>do</strong> se esquecia. To<strong>do</strong> o rancor<br />

esvanecia. O sangue, a única coisa que aplacava aquele desejo luxurioso de vida. E<br />

quan<strong>do</strong> a sede chegava, para longe voava a consciência, as memórias, e terminava por

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!