OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
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Que serve o amor, se um ente obscuro,<br />
Que o não merecia, foi quem ela amou?...<br />
Faceiro favônio, que as flores namora,<br />
Na gruta profunda a rosa festeja;<br />
Depois pelos prados, <strong>de</strong> volta, voando,<br />
Da rosa os perfumes no prado lenteja.<br />
E o jovem poeta, que em fogo se abrasa,<br />
Se da bela virgem amor mereceu,<br />
Nos hinos sagrados, que manda ao futuro,<br />
Eterna os encantos do amor, que valeu.<br />
Iguais são no fado, que tem a cumprir,<br />
Iguais num mistério a bela e a flor;<br />
A flor quer favônio, que espalhe perfumes,<br />
E a bela um poeta, que eternize amor.<br />
A voz <strong>de</strong> Cândido, a princípio trêmula e abatida, bem <strong>de</strong>pressa tornou-se<br />
firme, normal e somente comovida, como lho estava pedindo o seu cantar mavioso e<br />
terno; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo o mancebo esqueceu-se do lugar on<strong>de</strong> estava, dos olhos que o<br />
cercavam, e dos ouvidos que o ouviam. Era um artista, e como o verda<strong>de</strong>iro artista,<br />
indiferente a tudo mais, ele só via a bela que o inspirava; e todo, todo se entregava à<br />
inspiração. Com olhares ar<strong>de</strong>ntes embebidos em Celina, modulava seu canto<br />
harmonioso, que parecia sair da alma.<br />
Em profundo silêncio a assembléia mostrava-se suspensa e em êxtase; quando<br />
o mancebo acabou, soaram frenéticos aplausos... a comoção era geral; por alguns<br />
momentos não se pô<strong>de</strong> fazer mais nada.<br />
Celina tinha compreendido aquele cantar do mancebo. O rubor <strong>de</strong> suas faces,<br />
a agitação <strong>de</strong> seu seio a traía, e ainda mais seus olhos pregados na figura graciosa <strong>de</strong><br />
Cândido, pareciam aí presos por um encanto invencível.<br />
Salustiano o compreen<strong>de</strong>ra também; a pesar seu, ele, rico e orgulhoso, sentiase<br />
curvado ante a superiorida<strong>de</strong> do talento. O gênio não pe<strong>de</strong>, impõe respeito, e<br />
<strong>de</strong>safia inveja.<br />
O triunfo <strong>de</strong> seu rival <strong>de</strong>senhou-se na imaginação <strong>de</strong> Salustiano, pronto e<br />
inevitável. A cólera, o <strong>de</strong>speito, todas as paixões que do ciúme se originam, ferviam<br />
em seu peito; e como se uma idéia sinistra acabasse <strong>de</strong> luzir-lhe na alma, ele <strong>de</strong>ixou<br />
cair sobre Celina um olhar feroz e terrível, lançou a Cândido uma risada medonha, e<br />
cheia <strong>de</strong> um sarcasmo infernal, e foi direito a Mariana, que conversava com outras<br />
senhoras.<br />
– Passeemos! disse ele com <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa simplicida<strong>de</strong>.<br />
Mariana levantou os olhos, e teve medo do aspecto <strong>de</strong> Salustiano.<br />
– Passeemos! repetiu ele.<br />
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