OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
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em tom baixo, um canto melancólico.<br />
Ela escutou... o canto saía do sótão do “Purgatório-trigueiro”.<br />
A voz que cantava era a <strong>de</strong> Cândido.<br />
A noite mais bela, mais feliz <strong>de</strong>ntre todas as noites da vida do mancebo, era<br />
aquela que se estava passando.<br />
Ao terminar o serão <strong>de</strong>ixou o “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa” com sauda<strong>de</strong>s, mas sem<br />
aquela acerba amargura que o obumbrava sempre.<br />
O coração do mancebo estava repleto <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> esperança, e seu<br />
pensamento cheio <strong>de</strong> belas imagens.<br />
Estava Cândido em uma <strong>de</strong>ssas noites <strong>de</strong> magia em que a vida se <strong>de</strong>senha<br />
toda em tintas cor-<strong>de</strong>-rosa... noites <strong>de</strong> mentira, em que a imaginação nos pinta tão<br />
fácil tudo que ambicionamos!<br />
Um bom velho, cujos pés ele quereria beijar agra<strong>de</strong>cido, lhe marcara, durante<br />
cinco minutos, um lugar junto daquela que era em sua opinião a mais perfeita das<br />
criaturas. Aí ele bebera o ar que ela respirava, mais perfumado ainda que o aroma<br />
das melhores flores. Aí tivera ele sobre as suas duas mãozinhas mais brancas, mais<br />
livres que as penas <strong>de</strong> uma garça; ali ouvira ele frases, monossílabos tão melodiosos<br />
como harmonias moduladas por um anjo.<br />
E <strong>de</strong>pois, por <strong>de</strong>trás das cortinas <strong>de</strong> um leito virgem, que era como o brando<br />
cálice da flor, que nele se <strong>de</strong>itava, ouvira Cândido a revelação do sonho <strong>de</strong> uma<br />
donzela. Sonho que todo inteiro respirava amor; mas um amor tão puro, tão poético,<br />
tão celeste, qual só caberia no coração <strong>de</strong> um querubim...<br />
Oh! como realmente ficaria a cabeça daquele pobre mancebo, que tinha<br />
também imaginação ar<strong>de</strong>nte, escutando aquele romance enfeitiçado, on<strong>de</strong> o coração<br />
<strong>de</strong> uma virgem se transformava em botão <strong>de</strong> rosa, que não podia ser colhido nem<br />
pela riqueza, nem pelas factícias gran<strong>de</strong>zas sociais, mas e somente pelo mérito<br />
distinto e real?..<br />
Portanto, para aquela meiga pomba do Senhor Deus, para Celina, a pobreza<br />
não era um crime, não era – morféia. – A riqueza, embora mal adquirida, não era o<br />
tudo que governa o mundo. O belo, isto é, o mérito e virtu<strong>de</strong>, que são as gran<strong>de</strong>s<br />
belezas aos olhos <strong>de</strong> Deus, o belo é que podia ganhar o – pomo da ventura – colher<br />
o botão <strong>de</strong> rosa!<br />
Portanto, não lhe estava fechada a porta daquele paraíso. Não havia ali no<br />
alpendre do “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa” um <strong>de</strong>mônio com uma bolsa por coração, que, ao<br />
querer um pobre penetrar naquele santuário <strong>de</strong> amor, lhe bradasse com a voz sinistra<br />
dos <strong>de</strong>mônios da época: “aqui não entras!”<br />
Portanto se ele fosse nobre e ativo, se trabalhasse, se proce<strong>de</strong>sse como homem<br />
<strong>de</strong> honra, se com estudo profundo e incessante mostrasse que tinha capacida<strong>de</strong> e<br />
engenho, se com a observação das leis da religião <strong>de</strong> Cristo somente (porque as dos<br />
homens ou são essas mesmas leis enunciadas com mais difusão, e apropriadas a<br />
diversas especialida<strong>de</strong>s, ou são leis falsas e bárbaras), trilhasse sempre as vias da<br />
virtu<strong>de</strong>, podia, tinha o direito <strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r o pomo da ventura, <strong>de</strong> colher o botão <strong>de</strong><br />
rosa.<br />
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