18.04.2013 Views

OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...

OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...

OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>de</strong>leitar-se no estudo <strong>de</strong> suas músicas, viu aparecer uma cabeça branca e brilhar o<br />

olhar malicioso do velho guarda-portão.<br />

Mas é verda<strong>de</strong> que ainda não se tem idéia nem se fez conhecimento com o<br />

velho guarda-portão.<br />

Também poucas palavras serão <strong>de</strong> sobejo para que se faça uma idéia perfeita<br />

<strong>de</strong>sse personagem.<br />

A índole humana e piedosa <strong>de</strong> Anacleto, tinha dois ou três meses antes do<br />

começo <strong>de</strong>sta história, chamado para o “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa” um homem pobre e velho;<br />

e para que menos pesasse a este o benefício que recebia, Anacleto o envolveu sob a<br />

capa <strong>de</strong> um emprego, que em sua casa lhe dava. O velho Rodrigues foi pois ali<br />

reconhecido como – guarda-portão, – e estabelecendo o seu quartel-general no<br />

alpendre do “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”, via amanhecer e anoitecer em completa inação.<br />

O guarda-portão da casa <strong>de</strong> Anacleto era portanto um criado sem exercício,<br />

uma praça-morta pouco mais ou menos. Passava os dias retirado em um dos ângulos<br />

do alpendre, e só às noites, em que claro luar e doce frescor <strong>de</strong> aragem sucediam a<br />

algum calmoso dia, <strong>de</strong>ixava o pobre homem seu eterno posto por algumas horas, e<br />

sentando-se à porta do alpendre, cantarolava por entre os <strong>de</strong>ntes algumas antigas<br />

baladas.<br />

Era o velho Rodrigues um homem <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> sessenta anos, alto e <strong>de</strong> formas<br />

musculares; tinha os olhos pequenos, mas espertos, e o nariz aquilino. Os cabelos,<br />

que estavam já muito brancos, <strong>de</strong>viam ter sido <strong>de</strong> cor castanho escuros no tempo da<br />

mocida<strong>de</strong>, e corredios como eram, <strong>de</strong>sciam então até quase encontrar-se com as<br />

sobrancelhas, que se mostravam espessas e cerradas; <strong>de</strong> ordinário apresentava-se<br />

este homem vestido <strong>de</strong> calças <strong>de</strong> brim escuro sem presilhas, e com bolsos aos lados<br />

<strong>de</strong> jaqueta do mesmo pano, e algumas vazes com um quimono <strong>de</strong> baeta preta sobre<br />

esta.<br />

E, ou porque o velho Rodrigues fosse homem <strong>de</strong> poucas conversas, e<br />

dificilmente acessível para certa qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gente, ou porque muitos notassem no<br />

seu hábito <strong>de</strong> resguardar-se <strong>de</strong> dia em um canto do alpendre e <strong>de</strong> só aparecer em<br />

algumas noites à porta <strong>de</strong>ste, assentaram os garotos das circunvizinhanças <strong>de</strong><br />

chamá-lo por acinte – o Coruja; – <strong>de</strong> modo que, quando em suas noites <strong>de</strong> escolha o<br />

velho se mostrava, e começava <strong>de</strong> cantar suas antigas baladas, era às vezes<br />

interrompido pelos gritos <strong>de</strong> – Coruja! coruja! – que lhe soavam ora <strong>de</strong> um, ora <strong>de</strong><br />

outro lado da rua, acompanhados <strong>de</strong> risotas e motejos.<br />

Mas tão pouco se dava disso o guarda-portão, que começava e concluía sem<br />

se interromper um velho solau, passava por uma balada, <strong>de</strong>pois para outra e outra,<br />

até não po<strong>de</strong>r mais <strong>de</strong> cansado, enquanto os garotos riam-se <strong>de</strong>smedidamente<br />

daquelas <strong>de</strong>susadas cantigas.<br />

Pelo mesmo tempo, porém, em que começou esta história, sofreram também<br />

os hábitos do velho Rodrigues uma pequena modificação. Foi ela <strong>de</strong>vida ao amor<br />

que <strong>de</strong>dicava à música.<br />

Era costume do velho Anacleto e <strong>de</strong> sua filha sestear algum tempo <strong>de</strong>pois do<br />

jantar; e a “Bela Órfã”, então mais que nunca em liberda<strong>de</strong>, ia sentar-se ao piano e<br />

68

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!