OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
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O moço tinha <strong>de</strong>ixado cair a cabeça até encostar a barba na mão esquerda,<br />
apoiando-se com o cotovelo sobre a mesa: parecia esquecido <strong>de</strong> si mesmo e só<br />
entregue a um profundo cogitar <strong>de</strong> recônditos pensamentos; pesadas idéias como<br />
que se lhe exalavam d’alma, e se lhe iam encrespar em sua fronte elevada, cujas<br />
rugas horizontais po<strong>de</strong>riam dizer-se ondas <strong>de</strong> um ânimo em tempesta<strong>de</strong>.<br />
A cena <strong>de</strong> concentração e <strong>de</strong> silêncio se foi prolongando mais e mais, sem que<br />
o mancebo pu<strong>de</strong>sse arrancar-se dos braços <strong>de</strong> um pensamento em que, talvez a pesar<br />
seu, se achava embebido; e sem que também a velha ousasse <strong>de</strong>spertar o moço<br />
daquele completo sono da matéria, que <strong>de</strong>ixa a alma livre toda entregue a esse<br />
vivíssimo trabalho, que os homens chamam meditação.<br />
O toque <strong>de</strong> recolher veio <strong>de</strong>spertar o mancebo. O som dos bronzes pareceu<br />
tocar dolorosamente sua alma; e ele erguendo-se imediatamente, e sacudindo a<br />
cabeça como para espalhar o enxame <strong>de</strong> tristes idéias, que a pejavam, corou,<br />
olhando para Irias, e disse:<br />
– É tar<strong>de</strong>: boa-noite, minha mãe.<br />
Tomou então uma vela, acen<strong>de</strong>u-a, e sumiu-se por um corredor estreito e<br />
úmido, no fim do qual encontrou a escadinha do sótão, que vagarosamente galgou.<br />
A velha em silêncio o abençoou, e duas lágrimas grossas e brilhantes vieram<br />
pendurar-se das pálpebras <strong>de</strong> seus olhos ver<strong>de</strong>s, semelhantes a gotas <strong>de</strong> orvalho<br />
prestes a tombar do ápice <strong>de</strong> duas folhas <strong>de</strong> uma árvore secular.<br />
Mas quem era esse mancebo?...<br />
Chegado a casa <strong>de</strong> Irias apenas há dois meses, fora recebido como um<br />
extremosamente amado filho; e logo após sua vida correu triste e misteriosa,<br />
<strong>de</strong>sconhecida e abafada, como alguns <strong>de</strong>sses lúgubres pensamentos noturnos, que no<br />
leito concebem, e que no leito se <strong>de</strong>ixam até o repousar da seguinte noite.<br />
Sem um único amigo; só, Cândido (este o nome do mancebo) <strong>de</strong>ixava o<br />
pequeno sótão do “Purgatório-trigueiro” pouco <strong>de</strong>pois do amanhecer, e voltava <strong>de</strong><br />
novo a ele quando a noite <strong>de</strong>sdobrava o manto das trevas sobre a cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro.<br />
E ninguém tinha até então notado naquele mancebo, que duas vezes por dia<br />
passava triste e silencioso o limiar da porta do “Purgatório-trigueiro”. Apenas o par<br />
terrível o observava cuidadoso: Jacó o tinha seguido por vezes, mas parara vendo-o<br />
entrar em uma muito freqüentada rua da corte na casa <strong>de</strong> um advogado. Jacó, que<br />
fora escrivão, <strong>de</strong>testava a justiça agora, e tinha medo <strong>de</strong> quem com ela estava em<br />
relação; e portanto, mesmo para os dois maldizentes e curiosos vizinhos, a vida <strong>de</strong><br />
Cândido era um mistério... o pesa<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Jacó... o tormento <strong>de</strong> Helena.<br />
E o resto <strong>de</strong> sua vida, à noite, era ainda um novo segredo até para a velha<br />
Irias; era um segredo sepultado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> antigo sótão.<br />
E a filha <strong>de</strong> Paulo Ângelo, ao romper <strong>de</strong> todas as auroras, passeava negligente<br />
e <strong>de</strong>scuidada pelo seu jardim, e mal podia adivinhar que a essas horas a janeleta<br />
fechada do triste sótão do “Purgatório-trigueiro” encerrava um mancebo em toda<br />
força dos anos, que então ali <strong>de</strong>scansava, ou... quem sabe o que ele fazia?<br />
Mas quem era esse mancebo?...<br />
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