OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>CAPÍTULO</strong> VI<br />
VISITA DE GRATIDÃO<br />
NO DIA seguinte, e por volta das quatro às cinco horas da tar<strong>de</strong>, estavam<br />
conversando na sala principal do “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa” Mariana e seu velho pai.<br />
No ângulo anterior e direito da sala, e a poucos passos <strong>de</strong> uma janela, achavase<br />
sentado em excelente poltrona o ancião, que era <strong>de</strong> aspecto simpático e<br />
respeitável; <strong>de</strong>veria ter já passado dos sessenta anos; tinha os cabelos totalmente<br />
brancos, a fronte alta, o rosto pálido, finas e <strong>de</strong>licadas as mãos, e era um pouco<br />
magro. Estava envolvido em um robe <strong>de</strong> chambre <strong>de</strong> chita, vestia calças brancas, e<br />
calçava chinelas <strong>de</strong> marroquim ver<strong>de</strong>.<br />
Defronte do velho, tendo a cabeça <strong>de</strong>scansada graciosamente sobre a face<br />
palmar da mão que se estendia no peitoril da janela, Mariana estava olhando para<br />
ele, e entretinham-se ambos em discutir uma questão que parecia interessá-los<br />
muito.<br />
Anacleto, com os olhos fitos em sua filha, a escutava observando-a, e como<br />
que receava dar inteiro crédito a suas palavras.<br />
Posto que adorasse a Mariana com indizível extremo, o velho que a tinha<br />
estudado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, conhecia perfeitamente o caráter <strong>de</strong> sua filha, e mil vezes<br />
com um olhar firme e penetrante, lia no coração <strong>de</strong>la o contrário do que lhe ouvia<br />
dizer.<br />
Mariana tinha todas as boas e más qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma senhora da alta classe.<br />
Nobre, altiva, e mesmo vaidosa, sabia, quando era conveniente, humilhar-se horas<br />
inteiras diante daqueles mesmos a quem <strong>de</strong>testava, para <strong>de</strong>pois erguer-se veemente e<br />
orgulhosa. Ela misturava a audácia com a pusilanimida<strong>de</strong>, a mais inqualificável<br />
imprudência com um sangue frio que chegava a espantar. Sabia rir-se com os lábios<br />
quando chorava com o coração. Astuciosa, arrancava o segredo alheio e não<br />
confiava nunca o seu. Era capaz <strong>de</strong> rir-se à borda <strong>de</strong> um abismo, e <strong>de</strong> vir chorar<br />
numa sala <strong>de</strong> baile; e finalmente amava com ardor e odiava com extremo.<br />
O semblante <strong>de</strong> Mariana sempre impassível, sempre o mesmo, dava a suas<br />
palavras uma força imensa <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, não <strong>de</strong>ixando a ninguém ler-lhe no corar do<br />
rosto, no movimento dos lábios ou na expressão do olhar, o que se estava passando<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la: contudo Mariana tinha poucas vezes a virtu<strong>de</strong> da franqueza. Podia<br />
enganar, sabia que o podia, e enganava.<br />
Mas à força <strong>de</strong> viver com ela e <strong>de</strong> estudá-la, Anacleto era o único homem <strong>de</strong><br />
quem não triunfava o sangue frio e a feminilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana; o olhar do velho<br />
penetrava direito no coração da viúva; e diante <strong>de</strong> seu pai ela tremia e corava muitas<br />
vezes.<br />
Conversavam ambos.<br />
– Contudo, dizia o ancião, creio que ainda não é tempo <strong>de</strong> discutirmos sobre<br />
isto.<br />
27