OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
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Ninguém respon<strong>de</strong>u.<br />
– Vistes, continuou Anacleto <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> curto silêncio, vistes aquela rua que<br />
vem direito ao portão <strong>de</strong>ste passeio?... vós hoje chamais – das Marrecas – e nós<br />
chamávamos então – das Belas-noites: – compreen<strong>de</strong>is o que significava este<br />
nome?... era a <strong>de</strong>monstração viva do prazer, da felicida<strong>de</strong> que fruía a multidão<br />
imensa <strong>de</strong> ambos os sexos, que passava por essa rua para entregar-se a gozos puros<br />
aqui. Sobre estas gran<strong>de</strong>s mesas, junto <strong>de</strong> uma das quais estamos, ceavam famílias a<br />
quem os laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> ligavam, e nas quais havia às vezes um mancebo e uma<br />
moça que não tar<strong>de</strong> se ligariam por outros laços mais doces ainda. Oh! quantas<br />
vezes <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>ste caramanchel, ou em um passeio, ali por aquelas ruas sombrias e<br />
solitárias, não teve origem um terno sentimento, que foi logo <strong>de</strong>pois fazer a<br />
felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> duas criaturas!...<br />
Uma leve onda <strong>de</strong> rubor passou ligeira por sobre as faces <strong>de</strong> Celina, ao<br />
mesmo tempo que Cândido se fez mais pálido ainda.<br />
Irias, até então distraída, começava a observá-los, fitando ora na moça, ora no<br />
mancebo seus olhos ver<strong>de</strong>s.<br />
Anacleto prosseguiu:<br />
– Que é feito daqueles nossos dois pavilhões quadrangulares com sua estátua<br />
<strong>de</strong> Apolo coroando o do lado direito, e com a <strong>de</strong> Mercúrio o do esquerdo?... vossos<br />
dois torreões octogonais po<strong>de</strong>rão fazê-los esquecer?... <strong>de</strong>sconfio muito que não; pelo<br />
menos eu me hei <strong>de</strong> lembrar sempre do pavilhão da direita com seu teto <strong>de</strong><br />
arabescos, palmas e flores sobre fundo branco, todos formados <strong>de</strong> diversas cores;<br />
com suas sobreportas <strong>de</strong> baixos-relevos <strong>de</strong> pássaros <strong>de</strong> nossa terra, feitos à custa <strong>de</strong><br />
suas próprias penas. Pelo menos eu me hei <strong>de</strong> lembrar sempre do pavilhão da<br />
esquerda com seu teto <strong>de</strong> arabescos, palmas e flores sobre fundo azul, todos<br />
formados, não já <strong>de</strong> penas, como o outro, mas <strong>de</strong> lindas conchinhas, com suas<br />
sobreportas ornadas <strong>de</strong> relevos <strong>de</strong> peixes <strong>de</strong> nossos mares, feitos à custa <strong>de</strong> suas<br />
próprias peles; tudo isso era belo, era bem acabado, era obra <strong>de</strong> gênio; mas tudo isto<br />
está morto e morto ficará, porque vós não ten<strong>de</strong>s para ressuscitar tantas belezas o<br />
homem que nós tínhamos, o nosso –Xavier dos pássaros. – Sim! sim!... tudo está<br />
mudado. Mudou mesmo a índole, mudaram os hábitos, e é outro hoje e espírito da<br />
população.<br />
– É verda<strong>de</strong>! disse ainda a velha Irias; mas tendo sempre os olhos fitos ora em<br />
Cândido, ora em Celina.<br />
– E nós, que isso sentíamos, que por tudo isso passamos, sofremos agora ao<br />
visitar estes lugares, on<strong>de</strong> tanto gozamos, uma melancolia profunda, uma sauda<strong>de</strong><br />
imensa do nosso passado e ao mesmo tempo uma dor aguda e terrível, quando<br />
pensamos que os prazeres, as belas festas, os jardins, e os edifícios têm todos<br />
mudado <strong>de</strong> face, todos caídos, todos enfim morrido, que daquela época nós e poucos<br />
mais restamos, e que quando também morrermos só teremos do nosso tempo<br />
algumas folhas <strong>de</strong> árvores seculares, para cair sobre a tumba que nos cobrir.<br />
Ficaram <strong>de</strong> novo todos quatro em silêncio por algum tempo, e ainda<br />
tristemente, até que Anacleto <strong>de</strong> novo falou.<br />
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