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OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...

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semblante sossegado e prazenteiro.<br />

– Os meus papéis!... a minha história!... exclamou Celina logo que se viu só.<br />

E abrindo o que lhe <strong>de</strong>ixara o velho Rodrigues, <strong>de</strong> repente soltou um pequeno<br />

e abafado grito <strong>de</strong> admiração.<br />

Ficou muito tempo hesitando. Corou e empali<strong>de</strong>ceu, e hesitou <strong>de</strong> novo muito<br />

tempo; mas, finalmente, leu.<br />

A imaginação ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Cândido tinha produzido um canto arrebatado e<br />

cheio <strong>de</strong> fogo. A história do amor da “Bela Órfã” havia arrancado o coração do<br />

mancebo do abismo <strong>de</strong> profunda tristeza on<strong>de</strong> arquejava, e feito raiar em sua alma o<br />

belo sol da esperança com esses raios puros e brilhantes, mercê dos quais a vida do<br />

homem parece nadar em mar <strong>de</strong> luz, <strong>de</strong> magia, e <strong>de</strong> supremos gozos.<br />

Os entes privilegiados em quem a natureza acen<strong>de</strong>u essa chama sagrada, a que<br />

se dá o nome <strong>de</strong> poesia, amam, cultivam o objeto <strong>de</strong> seus amores, aborrecem, e<br />

<strong>de</strong>monstram o seu aborrecimento <strong>de</strong> um modo especial, <strong>de</strong> um modo que é só <strong>de</strong>les<br />

e <strong>de</strong> seus irmãos no engenho. Os artistas e os poetas amam e vingam-se como<br />

nenhuns outros no mundo. Amam e vingam-se com a pena, com o pincel, no papel e<br />

no mármore... imortalizam seu amor e sua vingança.<br />

Às vezes uma hora <strong>de</strong> fogo para esses homens é mais profícua do que um<br />

século para os outros.<br />

Cândido tinha tido uma <strong>de</strong>ssas horas felizes: <strong>de</strong>rramara enchentes <strong>de</strong> poesia<br />

no cântico da esperança, e convertera em hinos <strong>de</strong> amor seu coração agra<strong>de</strong>cido.<br />

Celina havia começado a ler receosa e trêmula; pouco <strong>de</strong>pois o fogo que<br />

animara o poeta foi ar<strong>de</strong>ndo também na alma da virgem, que finalmente ce<strong>de</strong>ndo<br />

aos impulsos da natureza, acabou por ler com paixão e entusiasmo os juramentos <strong>de</strong><br />

amor daquele que ela amava tanto.<br />

Quando a “Bela Órfã” chegou ao fim da última página, era já a hora do<br />

crepúsculo, hora voluptuosa e fantástica, em que não é dia nem noite, hora <strong>de</strong><br />

sonhos e <strong>de</strong> quimeras certamente; sonhos e quimeras porém, que todas as realida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>sta vida não po<strong>de</strong>m pagar nunca.<br />

Celina docemente recostada no banco <strong>de</strong> relva do caramanchão ficou<br />

meditando muito tempo. Não via mais os arbustos cobertos <strong>de</strong> flores, que tinha<br />

diante <strong>de</strong> si; não ouvia mais o ruído que fazia o favônio brincando com as flores.<br />

Estava vivendo no mundo encantado da imaginação; estava vendo a figura graciosa<br />

<strong>de</strong> Cândido, vibrando as cordas <strong>de</strong> sua harpa, e ouvindo sua voz harmoniosa e terna<br />

entoar o canto do poeta amoroso, como na noite <strong>de</strong> seus anos:<br />

“Iguais são no fado que têm a cumprir,<br />

“Iguais num mistério a bela e a flor;<br />

“Se a flor tem perfume, que o prado embalsama,<br />

“É délio perfume da bela o amor.”<br />

Os olhos da bela moça ora se fitavam sobre um objeto, que ela então nem via,<br />

ora vagavam indiferentes e incertos... até que uma vez...<br />

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