OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
– Mas não é tanto assim, minha senhora; a mulher <strong>de</strong>ve curvar-se diante do<br />
juízo dos homens só e unicamente até o ponto don<strong>de</strong> po<strong>de</strong> começar a ser ofendido o<br />
juízo <strong>de</strong> Deus.<br />
– Pobres mulheres! às vezes o dito <strong>de</strong> uma criança é <strong>de</strong> sobra para perdê-las<br />
na opinião do público; e <strong>de</strong>pois o discurso <strong>de</strong> um sábio não basta para purificar seu<br />
nome <strong>de</strong>ssa nódoa imaginária! pobres mulheres, que precisam pesar suas palavras <strong>de</strong><br />
cada vez que falam, ter cuidado com seus olhos <strong>de</strong> cada vez que olham... porque<br />
fazem <strong>de</strong> suas palavras e <strong>de</strong> seus olhos provas <strong>de</strong> erro, e até às vezes <strong>de</strong> crime!<br />
– Afeia <strong>de</strong>mais a posição do seu sexo na socieda<strong>de</strong>, minha senhora.<br />
– Não, isto é assim; eu, e todas, o temos experimentado. Há ocasiões em que<br />
um homem, que nos é indiferente ou só estimado como amigo, que nos respeita, que<br />
só por amiza<strong>de</strong> pura e sem interesse freqüenta a nossa casa, põe, apesar disso, em<br />
dúvida a inocência <strong>de</strong> nossas afeições; e, sem o pensar, abre caminho à<br />
mordacida<strong>de</strong>, e presta uma vítima à calúnia!<br />
Cândido não respon<strong>de</strong>u. Ficou olhando para Mariana como querendo<br />
apanhar-lhe algum pensamento oculto, que acabasse <strong>de</strong> ressumbrar em suas últimas<br />
palavras.<br />
Depois <strong>de</strong> hesitar também por algum tempo, a viúva continuou com voz muito<br />
comovida:<br />
– O senhor mesmo não tem escapado à maledicência.<br />
– Eu? exclamou Cândido estremecendo.<br />
– É verda<strong>de</strong>.<br />
– E como?... e por quê?<br />
– Eu lho vou dizer... custa-me muito a fazê-lo, porque talvez o senhor se<br />
julgue ofendido; mas eu cumpro o meu <strong>de</strong>ver... o meu <strong>de</strong>sgraçado <strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />
mulher.<br />
– Fale sem receio, minha senhora.<br />
Mariana hesitando sempre, e sempre comovida, começou, pobre escrava, a<br />
cumprir as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> seu senhor.<br />
– Sabe, que mortos os pais <strong>de</strong> Celina, foi o meu, como avô <strong>de</strong>la, nomeado seu<br />
tutor, que ele e eu recebemos a sagrada missão <strong>de</strong> velar por ela, e <strong>de</strong> fazer tudo por<br />
torná-la feliz?...<br />
– Sei, minha senhora, respon<strong>de</strong>u Cândido que <strong>de</strong> novo estremecera ouvindo<br />
pronunciar o nome da “Bela Órfã”.<br />
– Pois então, tornou Mariana, compreen<strong>de</strong> a imensa responsabilida<strong>de</strong>, que<br />
pesa sobre nós?... compreen<strong>de</strong> que sobre meu pai, e sobre mim recairá a culpa <strong>de</strong><br />
qualquer falta que por minha sobrinha for praticada, ou da calúnia que contra ela<br />
ousarem lançar?...<br />
– Compreendo, disse o mancebo recordando-se das lágrimas do velho<br />
Anacleto.<br />
– Agora escute: esse povo insano, que não vive senão quando murmura, essa<br />
gente indigna, que quando não acha uma ação <strong>de</strong> que murmurar inventa-a para com<br />
ela alimentar-se; esse povo, essa gente quando vê um mancebo solteiro freqüentando<br />
110