OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
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Estava pois Mariana embebida naquele mar <strong>de</strong> gozos imensos, naquele mundo<br />
<strong>de</strong> abstrações <strong>de</strong>leitosas, quando...<br />
Talvez mesmo passava nesse momento por diante <strong>de</strong> seus olhos a mais cara<br />
<strong>de</strong> suas imagens, porque ela apertou as mãos com indizível ardor contra o coração, e<br />
exalou um anelante suspiro, quando soou o rodar <strong>de</strong> uma carruagem que parou à<br />
porta do “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”.<br />
A viúva soltou um pequeno grito e ergueu-se inopinadamente.<br />
O mundo abstrato acabava <strong>de</strong> esvaecer-se; a realida<strong>de</strong> fria e pesada chegava.<br />
O rosto expansivo e belo <strong>de</strong> Mariana contraía-se dolorosamente.<br />
Tinha reconhecido o rodar daquela carruagem: aquela carruagem trazia-lhe<br />
um tormento sempre que parava junto do alpendre do “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”.<br />
A porta da sala abriu-se.<br />
– O sr. Salustiano! disseram.<br />
– Que entre! murmurou a viúva.<br />
E o rosto <strong>de</strong> Mariana tomou uma nova expressão; tornou-se frio, mas<br />
sossegado.<br />
Salustiano entrou, e veio sentar-se junto da viúva.<br />
Encontravam-se ainda uma vez a sós esse homem e essa mulher que se<br />
aborreciam tanto.<br />
– Parece que um anjo benfazejo me protege, disse Salustiano. Sempre que<br />
<strong>de</strong>sejo falar a V. Exa. sem testemunhas, uma ocasião própria se me oferece.<br />
– Hoje então...<br />
– V. Exa. se admirava talvez <strong>de</strong> me não ver há muito tempo, não é assim?...<br />
perguntou sorrindo o mancebo.<br />
– Oh! não; respon<strong>de</strong>u secamente Mariana; V. Sa. <strong>de</strong>u-nos o prazer <strong>de</strong> passar<br />
conosco o último serão; foi ainda há dois dias.<br />
– A resposta não parece das mais lisonjeiras; mas também é porque me não<br />
fiz compreen<strong>de</strong>r; eu dizia que V. Exa. talvez já se admirasse <strong>de</strong> me não ver procurar<br />
alguns momentos em que pu<strong>de</strong>sse falar-lhe a sós.<br />
– Também não. Pensava ao contrário que V. Sa. já tinha exigido <strong>de</strong> mim tudo<br />
quanto exigir podia, e que pela minha parte eu já me havia mostrado obediente<br />
<strong>de</strong>mais.<br />
– Demos que assim fosse; não quereria porém V. Exa. pedir-me a entrega <strong>de</strong><br />
alguma coisa que julgasse pertencer-lhe?...<br />
– Confesso que não pensava em tal. Confiava na sua honra, e julgava que não<br />
seria preciso pedir-lhe o que o <strong>de</strong>ver or<strong>de</strong>nava a V. Sa. que me entregasse.<br />
– Oh! mil vezes agra<strong>de</strong>cido; V. Exa. pela primeira vez em sua vida parece<br />
acreditar na honra do mais humil<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus escravos.<br />
– Senhor... <strong>de</strong> que serve aqui a ironia?<br />
– Já vejo, minha senhora, que conserva todas as suas antigas disposições; ama<br />
a verda<strong>de</strong> e a singeleza sobretudo.<br />
– Entendamo-nos, senhor, disse Mariana com sangue frio. Devo crer que não<br />
foi simplesmente para zombar <strong>de</strong> mim, que teve a complacência <strong>de</strong> vir hoje a esta<br />
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