OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
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No entanto, a interessante moça do “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”, bendizia a existência<br />
daquela casinha, e pedia ao céu que jamais se lhe mudasse a moradora: justa razão<br />
tinha ela para assim o pedir.<br />
A “Bela Órfã” gostava, e muito, <strong>de</strong> passar no jardim a sua hora matutina em<br />
completa liberda<strong>de</strong>; e seu jardim podia ser quase todo <strong>de</strong>vassado pelo pequeno sótão<br />
da velha casa; mas a janela <strong>de</strong>sse sótão, que podia incomodar a moça, não se abria<br />
nunca; e por conseqüência nenhum morador lhe <strong>de</strong>via ser tão agradável como essa<br />
pobre velha, que parecia amar a obscurida<strong>de</strong>, e tinha as janelas sempre fechadas.<br />
Apesar do muito que pareça mau gosto, a <strong>de</strong>speito mesmo <strong>de</strong> que erro se<br />
julgue abandonar uma personagem ainda pouco conhecida, para nos irmos ocupar já<br />
<strong>de</strong> outras por sem dúvida baldas do interesse que terá podido merecer a primeira;<br />
per<strong>de</strong>remos <strong>de</strong> vista, por um momento, a “Bela Órfã”, para travar conhecimento<br />
agora com a velha bruxa. Ainda bem que não é pecado, neste caso, <strong>de</strong>sprezar o<br />
caminho do “Céu”, a fim <strong>de</strong> penetrar no interior do “Purgatório”.<br />
Eram oito horas da noite.<br />
A saleta do “Purgatório-trigueiro” estava fracamente alumiada por uma única<br />
luz <strong>de</strong>posta sobre antiga mesa redonda, junto da qual tomavam café e pão a velha<br />
Irias e um mancebo <strong>de</strong> agradável presença, que <strong>de</strong>veria contar cerca <strong>de</strong> vinte anos;<br />
uma escrava da mesma ida<strong>de</strong> que a primeira, esperava <strong>de</strong> braços cruzados, e a<br />
alguma distância, a terminação da ceia.<br />
Irias era uma mulher setuagenária, alta, magra, <strong>de</strong> cabelos completamente<br />
brancos, <strong>de</strong> olhos ver<strong>de</strong>s, que <strong>de</strong>veriam ter sido belíssimos, e que ainda aos setenta<br />
anos ela os conservava sempre repletos <strong>de</strong> fogo e <strong>de</strong> vivacida<strong>de</strong>: tinha ainda todos os<br />
<strong>de</strong>ntes iguais, alvos e belos; vestia nessa noite um simples vestido <strong>de</strong> chita escura<br />
sem enfeite algum, e escondia os cabelos brancos por <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um lenço <strong>de</strong><br />
Alcobaça atado à cabeça.<br />
O mancebo era <strong>de</strong> estatura regular. Tinha cabelos pretos e anelados e a fronte<br />
elevada e bela. Seus olhos pardos, que às vezes, por passageiros instantes, se<br />
acendiam e dar<strong>de</strong>javam olhares ar<strong>de</strong>ntes, mostravam-se <strong>de</strong> ordinário <strong>de</strong>smaiados e<br />
amortecidos; por baixo <strong>de</strong> suas pálpebras inferiores <strong>de</strong>senhavam-se olheiras<br />
roxeadas e filhas talvez da vigília e do estudo; a tez pálida <strong>de</strong>sse mancebo condizia,<br />
enfim, perfeitamente, com o parecer melancólico e abatido e com o silêncio<br />
obstinado que guardava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo da refeição; estava ele <strong>de</strong> calças brancas e<br />
com um lencinho <strong>de</strong> seda encarnada ao pescoço, e finalmente vestia um chambre <strong>de</strong><br />
riscadinho azul abotoado até em cima.<br />
Embora a melancolia <strong>de</strong>vesse ser natural nesse mancebo, é provável que<br />
alguma coisa, fora do comum, nele houvesse naquela noite; pois que a velha Irias<br />
lhe lançava <strong>de</strong> relance vistas perscrutadoras e ele cem vezes tinha já estremecido,<br />
como por uma horripilação momentânea e súbita.<br />
Terminada a ceia, a velha e o mancebo ergueram-se, rezaram, e tornaram a<br />
sentar-se, ao mesmo tempo que a escrava retirou <strong>de</strong> sobre a mesa o velho serviço.<br />
Uma hora longa e muda passou então para aquele mancebo, que meditava, e<br />
para aquela velha, que observava.<br />
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