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OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...

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Às vezes não se estuda a nobreza dos sentimentos da pessoa a quem se vai,<br />

sempre involuntariamente, amar; e nunca se espera por nenhuma prova <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação<br />

e paciência, e não se po<strong>de</strong> esperar por alguma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteresse; porque o amor é<br />

terrivelmente interesseiro no seu gênero.<br />

Às vezes dois olhos pretos, dois lábios <strong>de</strong> coral, e um instante para vê-los,<br />

resumem toda a história <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> amor.<br />

Pois bem, aí ten<strong>de</strong>s um amor e uma amiza<strong>de</strong>: o primeiro, filho do<br />

temperamento ou da simpatia, ou do que quiser<strong>de</strong>s; o filho, em suma, <strong>de</strong> um curto<br />

momento em que não houve nem reflexão nem vonta<strong>de</strong>; a segunda, sentimento<br />

refletido, criado pela <strong>de</strong>dicação, amamentado pela virtu<strong>de</strong>, educado cuidadosamente<br />

durante muitos anos.<br />

Aí ten<strong>de</strong>s a amiza<strong>de</strong>, virgem encantadora cheia <strong>de</strong> pureza, <strong>de</strong> formosura, <strong>de</strong><br />

graça e <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>; e o amor, menino impertinente, audacioso, exigente,<br />

importuno, teimoso... para dizer tudo, menino malcriado.<br />

O que é que acontece no correr da vida <strong>de</strong> ambos?...<br />

Acontece que o filho do momento, que <strong>de</strong>via ser o mais fraco, é o mais forte;<br />

que o menino malcriado, que <strong>de</strong>via ser menos tolerado, é <strong>de</strong> quem se sofre. muito<br />

mais.<br />

A amiza<strong>de</strong> para viver precisa que a aju<strong>de</strong>m: é a lâmpada do templo, cuja luz<br />

se extingue se lhe falta o óleo; é necessário que a <strong>de</strong>dicação, o <strong>de</strong>sinteresse, a<br />

paciência, que já tanto se provaram, vão sempre <strong>de</strong> seu existir dando novas provas,<br />

para que a amiza<strong>de</strong> subsista; para que a virgem não fuja envergonhada.<br />

E o amor?... amai, e ve<strong>de</strong>: aquilo mesmo que <strong>de</strong>struiria para logo a mais<br />

antiga e enraizada amiza<strong>de</strong>, é quase sempre um incentivo que dá mais vigor e mais<br />

fogo ao filho do momento.<br />

Amai, e ve<strong>de</strong>: a mulher que vos plantou no coração esse sentimento, vos<br />

<strong>de</strong>safia com seus rigores; vos faz escravo <strong>de</strong> seus caprichos; com um <strong>de</strong>sdém<br />

arranca lágrimas <strong>de</strong> vossos olhos, e com uma lágrima vos faz dobrar os joelhos.<br />

Na amiza<strong>de</strong>, a traição faz esquecer; no amor, a traição faz enlouquecer.<br />

As diferenças que existem entre os dois sentimentos continuam ainda; e,<br />

como <strong>de</strong>via acontecer, compensam finalmente os triunfos que sobre a amiza<strong>de</strong> dão<br />

no princípio ao amor.<br />

O orgulhoso que <strong>de</strong> si mesmo tirava suas forças, que vivia <strong>de</strong> seus caprichos,<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sdéns e <strong>de</strong> lágrimas, <strong>de</strong>via por força cansar mais <strong>de</strong>pressa do que a virgem<br />

mo<strong>de</strong>sta, que caminhava cuidadosamente à sombra <strong>de</strong> mil cuidados e guiada pela<br />

virtu<strong>de</strong> e pela <strong>de</strong>dicação.<br />

O tempo é portanto a vida da amiza<strong>de</strong> e a morte do amor.<br />

E assim como vimos há pouco, que aquilo mesmo que podia instantaneamente<br />

matar a amiza<strong>de</strong>, era para o amor incentivo que lhe dava mais vigor e lhe tornava<br />

mais intenso o fogo; veremos agora, em compensação também, que o princípio que<br />

anima a primeira é causa do resfriamento e morte do segundo.<br />

Queremos falar do gozo, porque, embora <strong>de</strong> natureza distinta, tanto o amor<br />

como a amiza<strong>de</strong> têm o seu.<br />

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