OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
– Creio que não conseguirá o que preten<strong>de</strong>. Minha sobrinha é mais forte e<br />
<strong>de</strong>cidida do que parece, e meu pai ama-a muito para querer sacrificá-la.<br />
– V. Exa. nada fará por mim?...<br />
– Eu não posso fazer nada.<br />
– Sejamos francos, minha senhora; pela última vez, sejamos francos; <strong>de</strong>mos<br />
cartas para jogarmos a última partida.<br />
A voz <strong>de</strong> Salustiano tinha mudado <strong>de</strong> tom, como seu rosto tomara uma<br />
expressão fisionômica toda nova, era o senhor que se erguia diante da escrava.<br />
No semblante <strong>de</strong> Mariana apenas uma ligeira contração dos músculos labiais<br />
atraiçoou seus pa<strong>de</strong>cimentos interiores.<br />
– Sejamos francos, disse Salustiano; eu sei que a minha presença nesta casa é<br />
incômoda a todos; sei que seu pai me aborrece, que sua sobrinha me <strong>de</strong>spreza e que<br />
a senhora me o<strong>de</strong>ia como a vítima o<strong>de</strong>ia o algoz.<br />
Mariana não pronunciou uma só palavra, não fez mesmo o menor sinal, o<br />
mais leve movimento para <strong>de</strong>smentir Salustiano.<br />
O mancebo prosseguiu:<br />
– E no entanto, senhora, tudo parece ser disposto por um po<strong>de</strong>r superior para<br />
que eu me ligue a esta casa.<br />
– Po<strong>de</strong>res superiores, senhor, concebem-se <strong>de</strong> diversas naturezas, observou<br />
Mariana.<br />
– Um feliz acaso, já o tenho dito muitas vezes, continuou Salustiano, pôs a<br />
mais soberba e orgulhosa das mulheres sob a <strong>de</strong>pendência do mais fraco e humil<strong>de</strong><br />
dos homens.<br />
– Que humilda<strong>de</strong>!...<br />
– Mas tudo <strong>de</strong>via ser compensado; e assim como esse feliz acaso me <strong>de</strong>u aqui<br />
o caráter <strong>de</strong> senhor, o meu coração e o meu amor me faz curvar a cabeça como um<br />
escravo.<br />
– E o que mais? o que mais?...<br />
– Eu vim mesmo encontrar nesta casa recordações da minha infância. Há<br />
alguns meses um velho ocupa aqui o lugar <strong>de</strong> guarda-portão, e esse velho, senhora,<br />
viu-me nascer, viu-me crescer, e apenas <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> meu pai <strong>de</strong>ixou a minha<br />
casa.<br />
– É possível?! exclamou Mariana. Um traidor! um espião!...<br />
– Não; nada <strong>de</strong> injustiças, respon<strong>de</strong>u Salustiano. Eu e esse homem não fomos,<br />
nunca, amigos; e, além disso, acho-me hoje no caso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r dizê-lo, porque tenho<br />
sabido velar por meu amor. O velho Rodrigues é protetor do jovem Cândido; ele<br />
entra todos os dias no “Purgatório-trigueiro”, e, ou o ciúme não sabe adivinhar<br />
segredos, ou esse maldito velho tem concebido o pensamento <strong>de</strong> ligar o seu<br />
protegido à “Bela Órfã”.<br />
– Enfim, senhor...<br />
– Enfim, senhora, estamos hoje <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo um do outro: somos dois furiosos<br />
inimigos, que uma <strong>de</strong>pendência mútua pô<strong>de</strong> tornar amigos <strong>de</strong>votados. Uma palavra<br />
diz tudo: um documento por uma mulher, senhora!...<br />
177