OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
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Multidão imensa <strong>de</strong> homens e mulheres, todos vestidos <strong>de</strong> luto, saíam ou<br />
entravam em turmas pelas portas dos templos como ondas negras.<br />
Apesar <strong>de</strong> sua vaidosa ostentação, <strong>de</strong> sua inoportuna riqueza, os jazigos<br />
ofereciam um aspecto sublime e melancólico: era o aspecto da morte.<br />
O cemitério <strong>de</strong> S. Francisco <strong>de</strong> Paula estava semeado <strong>de</strong> túmulos e repleto <strong>de</strong><br />
povo.<br />
Os curiosos que o visitavam cediam à força do império da morte;<br />
obumbravam-se.<br />
Os órfãos e as viúvas, os pais que haviam perdido seus filhos, choravam e<br />
rezavam.<br />
A <strong>de</strong>speito das galas e do luxo <strong>de</strong> alguns imensos mausoléus, o pó, o nada<br />
humano parecia transudar por entre as molduras douradas, e uma caveira se<br />
mostrava triunfante <strong>de</strong> sobre as colunas <strong>de</strong> ébano.<br />
Nos túmulos humil<strong>de</strong>s, sem pompa <strong>de</strong> luxo, cobertos <strong>de</strong> roxos amarantos e<br />
tristíssimas perpétuas, como que o gênio da sauda<strong>de</strong> estava aí sentado para<br />
intermediário entre a dor do vivo e a alma do- morto. O túmulo sem pompa era a<br />
expressão da sauda<strong>de</strong> do vivo.<br />
Porque, preciso é dizê-lo, a verda<strong>de</strong>ira dor é simples e singela; e a sauda<strong>de</strong><br />
que se não simula, a sauda<strong>de</strong> que sai do coração, não tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adornar-se.<br />
Assemelham-se nisso às mulheres, que quanto mais feias mais se enfeitam para<br />
disfarçar seus senões, e quanto mais belas mais simplesmente se vestem para<br />
ostentar seus naturais encantos. Assim a dor e a sauda<strong>de</strong> que se fingem, precisam <strong>de</strong><br />
ornar-se muito, e as que são verda<strong>de</strong>iras apresentam-se nuas... e sua nu<strong>de</strong>z é<br />
imensamente sublime.<br />
A melhor expressão <strong>de</strong> uma dor é o pranto. O mais rico ornamento dos<br />
túmulos é a caveira.<br />
Os vestidos <strong>de</strong>vem condizer com o corpo que se veste. Não há, não po<strong>de</strong><br />
haver relação entre molduras, franjas douradas e um esqueleto.<br />
Essa riqueza parece uma zombaria que a vida faz à morte. Essa riqueza<br />
<strong>de</strong>strói completamente a idéia tremenda que em tal dia <strong>de</strong>ve ocupar o espírito dos<br />
vivos.<br />
Porque à porta do cemitério o homem lê as terríveis palavras <strong>de</strong> morte:<br />
“Lembra-te, homem, que és pó, e que em pó te hás <strong>de</strong> tornar”. E <strong>de</strong>ntro do jazigo <strong>de</strong><br />
encontra ouro... ostentação... luxo...<br />
Para que pois uma tão gran<strong>de</strong> mentira em dia <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>?... não<br />
sabeis?<br />
É porque o filho do rico tremeu quando viu que os ossos <strong>de</strong> seu pai não se<br />
podiam distinguir dos ossos do mendigo; e com as galas da vida quis escon<strong>de</strong>r a<br />
igualda<strong>de</strong> do pó.<br />
Embora... Ou no mausoléu, ou na simples urna funérea, estava sempre o<br />
triunfo da morte. Mesquinha diferença havia: um guardava o esqueleto do rico, a<br />
outra os ossos do pobre; mas <strong>de</strong> mistura um e outros, quem acertaria com a caveira<br />
do primeiro?. .<br />
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