OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
ofen<strong>de</strong>u, ou o senhor nos ofen<strong>de</strong>; e em todo caso uma explicação se faz necessária.<br />
Cândido empali<strong>de</strong>ceu a próprio pesar, e ficou pensando.<br />
– Estuda para respon<strong>de</strong>r? perguntou o velho.<br />
Com um sorriso fraco e triste respon<strong>de</strong>u o mancebo.<br />
– Agra<strong>de</strong>ço-lhe, senhor, a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za com que me trata, e o interesse que eu<br />
não mereço; mas que, apesar disso, mostra por mim.<br />
– Não se trata <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimentos, nem <strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zas e nem <strong>de</strong> interesses: o<br />
caso é simples, meu caro; alguém o ofen<strong>de</strong>u em minha casa?...<br />
– Ninguém, disse o mancebo, rindo-se amargamente como há pouco.<br />
– Então como <strong>de</strong>vo eu explicar o que ocorreu. e está ainda ocorrendo?...<br />
– Explique como quiser, senhor; explique pela minha má cabeça.<br />
– Como é isso?...<br />
Cândido pensou alguns instantes e começou <strong>de</strong>pois a falar.<br />
– Eu errei em não ter agra<strong>de</strong>cido, em não haver fugido <strong>de</strong> aceitar o<br />
oferecimento que V. Sa. me fez da sua casa...<br />
– Quê?...<br />
– Ah! senhor! eu direi tudo. Invejar a ventura dos outros é um crime; mas<br />
forçar um infeliz a ter diante dos olhos e constantemente o quadro da felicida<strong>de</strong><br />
alheia, é quase rir <strong>de</strong> seus tormentos!<br />
– Então...<br />
– Sua casa é um céu <strong>de</strong> prazeres e... <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s; estar porém ali um<br />
<strong>de</strong>sgraçado que não po<strong>de</strong> fruir esses prazeres, e, que, se acaso tem uma ou outra<br />
virtu<strong>de</strong>, não a po<strong>de</strong> mostrar para ser por ela estimado, é o martírio <strong>de</strong> Tântalo... a<br />
causa creio que foi essa; eu me retirei por isso.<br />
– Sr. Cândido, há nas suas palavras alguma coisa que se parece com a ironia,<br />
e há no seu coração algum sentimento que quer sair e não po<strong>de</strong>, porque o senhor<br />
impe<strong>de</strong>.<br />
– Não... não... tudo se diz em uma palavra; eu sou infeliz, e tenho consciência<br />
<strong>de</strong> o ser. Além da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu infortúnio, senhor, a natureza <strong>de</strong>u-me ambições,<br />
<strong>de</strong>u-me <strong>de</strong>sejos que não posso realizar, e que por conseqüência me atormentam.<br />
– Devo falar-lhe com franqueza, sr. Cândido: entendo que a sua posição na<br />
socieda<strong>de</strong> não é a melhor possível; que seus merecimentos lhe marcavam um lugar<br />
mais alto nela. Compreendo mesmo que um moço pobre, que vê o mundo cheio <strong>de</strong><br />
gozos e <strong>de</strong>licias que não lhe é dado gozar, tem até certo ponto razão para entristecerse<br />
durante algumas horas; olhe porém à roda <strong>de</strong> si, sr. Cândido; que número imenso<br />
<strong>de</strong> homens não está aí diante <strong>de</strong> seus olhos com mil vezes mais razão para lastimarse?...<br />
quantos tiveram como o senhor a felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> receber uma educação<br />
proveitosa e acurada?... já não é alguma coisa a superiorida<strong>de</strong> da luz do seu espírito?<br />
O moço sacudiu a cabeça, e disse:<br />
– Já confessei que sou ambicioso; e <strong>de</strong>mais, a educação agiganta as privações.<br />
O mendigo contenta-se com um pedaço <strong>de</strong> pão velho para comer, e com um capote<br />
feito em pedaços, e com a porta <strong>de</strong> uma igreja para dormir; mas o mendigo não<br />
140