OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
comparecido como ré diante <strong>de</strong> nenhum tribunal da terra; mas o castigo <strong>de</strong> Deus<br />
torturava a mísera.<br />
Tinha remorsos.<br />
Como havia essa mulher sido levada à perpetração <strong>de</strong> um crime horroroso?<br />
Ela, filha <strong>de</strong> um homem bom, irmã <strong>de</strong> um homem virtuoso, tendo diante dos olhos<br />
constantes exemplos <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> e religião?... Como?... Ah! não precisais ir pedir<br />
uma resposta ao péssimo da natureza humana, com que erradamente preten<strong>de</strong>is<br />
explicar os efeitos das paixões que não foram combatidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o berço.<br />
Quereis saber por que Mariana ousou tanto?... Perguntai à vaida<strong>de</strong>.<br />
A filha <strong>de</strong> Anacleto, lindo anjinho na infância, encantadora moça <strong>de</strong>pois, bela<br />
senhora ainda então, cheia <strong>de</strong> graças e <strong>de</strong> espírito, havia sido criada sempre no meio<br />
<strong>de</strong> uma atmosfera <strong>de</strong> fatais lisonjas. Respirou um ar <strong>de</strong> mentiras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio.<br />
Com esse ar habituaram-se os seus pulmões; a verda<strong>de</strong> que fosse um pouco menos<br />
lisonjeira seria capaz <strong>de</strong> sufocá-la. Objeto <strong>de</strong> um amor extremoso e cego da parte <strong>de</strong><br />
seus parentes; objeto <strong>de</strong> culto e <strong>de</strong> adoração dos estranhos, Mariana julgou-se a<br />
princesa da formosura, empunhou orgulhosa o cetro da beleza; ergueu a cabeça<br />
acima <strong>de</strong> todas as suas contemporâneas, e, cheia <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>, queria fitos em si todos<br />
os olhos, absortos diante <strong>de</strong>la todos os homens, e curvos a seus pés todos os amores.<br />
Per<strong>de</strong>r essa posição seria morrer.<br />
Mas ela amou. Amou, e foi fraca. Amou, e um dia viu que o seu trono ia ser<br />
<strong>de</strong>spedaçado; que o cetro ia escapar <strong>de</strong> suas mãos; que os cultos e as adorações<br />
tinham <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer para ela; que ao muito ela seria daí por diante objeto <strong>de</strong><br />
comiseração e pieda<strong>de</strong>; porque enfim, ela tinha amado e sido fraca; tinha murchado<br />
em seu rosto a mais bela das flores, a flor da inocência, e a natureza falava em voz<br />
alta <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu seio...<br />
A mísera lembrou-se então <strong>de</strong>sse mundo encantador que a adorava como<br />
rainha, e que bem <strong>de</strong>pressa se ergueria rebelado e furioso para arrancar-lhe o cetro<br />
<strong>de</strong> rosas...<br />
Que partido havia a tomar?<br />
Um meio lhe sugeria o espírito; um meio que a livrava das humilhações. Era<br />
um meio extremo... e <strong>de</strong>sesperado; era o suicídio. Mas o mundo se mostrava a seus<br />
olhos tão belo... tão feiticeiro!... e ela tinha apenas quinze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>!... qual é a<br />
moça <strong>de</strong> quinze anos que não ama loucamente um mundo que sorri <strong>de</strong> joelhos a seus<br />
pés? morrer, não. Aos quinze anos Mariana não se achou com bastante força para<br />
matar-se.<br />
Que outro partido restava?... A resignação.<br />
Ainda há pouco, tinha falado o amor do mundo para repelir a idéia da morte.<br />
Agora, contra a idéia da resignação, ergueu-se o amor <strong>de</strong> si mesma levado a<br />
excesso; ergueu-se a vaida<strong>de</strong>. Resignar-se a quê?... a passar <strong>de</strong> rainha a vassala?...<br />
não ganhar nunca mais um só <strong>de</strong>sses olhares ar<strong>de</strong>ntes e puros que corações<br />
anelantes dar<strong>de</strong>jam sobre o rosto da inocência?... resignar-se-ia, quando passasse<br />
pálida e dolorosa, ouvir dizer – coitada! – quando ela estava acostumada a escutar –<br />
formosa!... oh! era muito para Mariana. A mulher vaidosa escolheria antes a morte<br />
231