OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
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irmãos; – achava em tal mais um motivo para ocultar-se, como já inútil; e às vezes<br />
escapava-lhe uma lágrima, pensando que po<strong>de</strong>ria ser pesada.<br />
Mas essa mesma vida <strong>de</strong> retiro e sossego, essa vida quase <strong>de</strong> mistério,<br />
redobrava o interesse que pela órfã se mostrava.<br />
E ao mesmo tempo que ela, ao amanhecer cuidando <strong>de</strong> suas flores, durante o<br />
dia <strong>de</strong> suas músicas e trabalhos, e <strong>de</strong> noite triste e docemente refletindo, se supunha<br />
esquecida <strong>de</strong> todos, se acreditava, ao muito, objeto só <strong>de</strong> alguma terna sauda<strong>de</strong><br />
como a que se tem <strong>de</strong> um bom amigo <strong>de</strong> muito tempo perdido, os velhos protegidos<br />
<strong>de</strong> seu pai, os filhos da carida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo Ângelo, a fantasia romanesca do povo<br />
entusiasta celebravam a apoteose da interessante moça, criando para ela o “Céu cor<strong>de</strong>-rosa”;<br />
dando-lhe o nome <strong>de</strong> “Bela Órfã”, inventando um “Purgatório-trigueiro”;<br />
fazendo habitante <strong>de</strong>ste uma velha bruxa, e até enfim forjando uma paixão<br />
miraculosa entre a “Bela Órfã” e o astro do dia.<br />
Ora, como é natural, a fama da beleza e das virtu<strong>de</strong>s da “Bela Órfã” não se<br />
<strong>de</strong>ixou ficar no bairro da Lapa do Desterro, e correndo por toda cida<strong>de</strong>, chegou<br />
também aos ouvidos dos senhores do bom-tom, que, começando por isso a freqüentar<br />
a rua <strong>de</strong>.. e conhecendo que no “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa” não era a “Bela Órfã” a<br />
única beleza que havia, fizeram <strong>de</strong>ssa rua o seu passeio <strong>de</strong> escolha, e <strong>de</strong>safiaram<br />
assim a curiosida<strong>de</strong> dos sossegados habitantes <strong>de</strong>la.<br />
Como dissemos, essa curiosida<strong>de</strong> estava já satisfeita, o mistério tinha sido<br />
facilmente explicado. Jacó havia apontado para o “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”, e dito:<br />
– A causa é aquilo.<br />
Agora, <strong>de</strong>sviando-nos um pouco da porta do “Céu”, convém que entremos<br />
diretamente no “Purgatório”.<br />
<strong>CAPÍTULO</strong> II<br />
O “PURGATÓRIO-TRIGUEIRO”<br />
NO FIM do muro que <strong>de</strong>fendia o jardim do “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”, estava, como<br />
já dissemos, o “Purgatório-trigueiro”.<br />
Era uma velha casinha, cujas pare<strong>de</strong>s se mostravam carcomidas pelo tempo:<br />
entrava-se por uma rótula em péssimo estado; havia ao lado <strong>de</strong>sta, e pela parte<br />
direita, uma janela sem vidraças, mas com postigos que se abriam para os lados, e<br />
nada mais. Nem mesmo da rua se podia fazer uma justa idéia do pequeno sótão que,<br />
como envergonhado, <strong>de</strong>itava suas janelas para trás, e que apenas assinalava sua<br />
existência pela parte anterior, na elevação do telhado enegrecido e limoso, o que<br />
ainda mais afeava a antiga casinha, simulando corcova enorme <strong>de</strong> velha.<br />
Aquela triste e miserável habitação tinha em si um não sei quê <strong>de</strong> repugnante;<br />
e todavia não era maldição, não era escárnio o que o povo votava ao velho casebre;<br />
era sim a cruel antítese, que a fazia conhecer por um nome afrontoso.<br />
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