OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
mesmo diante daquele que amo.<br />
Que diferença entre ambos!<br />
Um é a modéstia, que receosa se afasta e se escon<strong>de</strong>, e que por isso mesmo é<br />
mil vezes mais bela.<br />
O outro é a presunção que se ostenta, que se impõe e que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> aborrecernos<br />
muito, retira-se pensando que nos <strong>de</strong>ixa em êxtase.<br />
Um é a palavra da virtu<strong>de</strong>, que soa unicamente para louvar o mérito; é a<br />
gravida<strong>de</strong> do homem nobre, a pureza das almas cândidas.<br />
O outro é a loquacida<strong>de</strong> do vício, não sabendo falar senão a linguagem<br />
venenosa do sarcasmo; lançando a calúnia, a sátira e o epigrama no meio da<br />
conversação mais séria e <strong>de</strong>licada. E quando não fala, o aspecto <strong>de</strong> um bufo ou <strong>de</strong><br />
um malvado com seu rir constante, rir maledicente... rir venenos... ou rir estúpido.<br />
Um crê na eternida<strong>de</strong> e em Deus, e crê na honra dos homens; o outro zomba<br />
dos mistérios e não acredita na honra <strong>de</strong> ninguém. Um é o néctar da virtu<strong>de</strong>... o<br />
outro é a peçonha da víbora!...<br />
Que diferença entre ambos!...<br />
X<br />
Já lá vai a noite <strong>de</strong> meus anos: contraditória, inconseqüente, como tudo mais<br />
que hoje comigo se passa, ela encheu a minha alma <strong>de</strong> prazeres e <strong>de</strong> pesares.<br />
Pela primeira vez ele tinha <strong>de</strong> cantar no “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”. Chegou a hora <strong>de</strong><br />
seu canto... ele veio melancólico e gracioso e sentou-se <strong>de</strong>fronte <strong>de</strong> mim.<br />
Trouxeram-lhe uma harpa.<br />
Aquele mancebo pálido e triste, com cabelos tão negros e mãos tão brancas,<br />
causou-me uma impressão que eu não posso bem <strong>de</strong>finir; julguei estar vendo um<br />
<strong>de</strong>sses quadros amorosos dos tempos romanescos da Ida<strong>de</strong> Média.<br />
Sua voz soou... que voz! seu canto saía-lhe da alma; era um canto <strong>de</strong> amor.<br />
Seus olhos embebidos no meu rosto me estiveram repetindo o mesmo que no<br />
apaixonado canto dizia; eu era tão feliz!...<br />
Estava orgulhosa do amor <strong>de</strong>sse homem!<br />
Estava suspensa... – não me achava na terra – aquele canto me erguia em suas<br />
asas harmônicas, levando-me para a região fantástica, on<strong>de</strong> mora a imaginação do<br />
bardo que cantava.<br />
Terminou o canto... mas eu fiquei ouvindo sempre aquelas doces harmonias,<br />
como se um anjo mas estivesse repetindo aos ouvidos; era talvez o anjo <strong>de</strong> amor que<br />
cantava, e o coração amante que ouvia.<br />
Depois ele saiu da sala; procurei-o todo o resto da noite com os olhos, com o<br />
coração e com o pensamento: não apareceu.<br />
Por que se retirou ele?... eu tremo.<br />
Oh! o meu amor é tão novo, tão inocente, tão anjo como uma criancinha<br />
recém-nascida e uma flor que acaba <strong>de</strong> <strong>de</strong>sabotoar-se.<br />
Ah! pobre mãe! como é fácil, apesar <strong>de</strong> tuas lágrimas, ver morrer ali no berço<br />
171