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OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...

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mais se po<strong>de</strong>rá apagar nele a imagem <strong>de</strong>ssa triste, mas consoladora cena. Celina<br />

sentira, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro momento, gratidão imensa pelo procedimento <strong>de</strong> Cândido.<br />

A velha Irias e o mancebo tinham vindo no dia seguinte agra<strong>de</strong>cer-lhe um<br />

pequeno serviço, que ela lhes havia prestado no anterior. Durante a visita pu<strong>de</strong>ra<br />

examinar o jovem, a quem era agra<strong>de</strong>cida; e seu rosto pálido, mas expressivo, sua<br />

melancolia tocante, suas maneiras urbanas e mo<strong>de</strong>stas, atraíram sua atenção, e ao<br />

muito, po<strong>de</strong> ser que também a sua simpatia.<br />

Mas Celina tinha ouvido dizer que o mancebo habitava no sótão do<br />

“Purgatório-trigueiro”, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então nunca mais passeou no seu jardim à hora<br />

primeira do dia, com a mesma ligeireza <strong>de</strong> vestidos, e <strong>de</strong> modos como dantes.<br />

Debal<strong>de</strong>, porém, olhava para a janela do sótão... jamais lhe aparecera o rosto pálido<br />

<strong>de</strong> Cândido.<br />

Depois o mancebo começou a freqüentar o Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”; e aquela sua<br />

habitual melancolia, aquele seu passar <strong>de</strong> horas inteiras afastado <strong>de</strong> todos, alheio aos<br />

prazeres, sempre triste ou abatido, como se fora consumido por um intenso e acerbo<br />

pesar, e aqueles olhares <strong>de</strong> fogo, que <strong>de</strong> relance dar<strong>de</strong>java sobre Celina, a faziam<br />

perguntar a si mesma: “por que ele está sempre triste?... por que motivo me olha <strong>de</strong><br />

modo tão singular?...”<br />

É incontroverso que o coração das moças chega ao amor subindo<br />

ordinariamente por uma escadinha, cujo primeiro <strong>de</strong>grau se chama curiosida<strong>de</strong>.<br />

Aqui houve em parte uma modificação <strong>de</strong>ssa regra. Porque se acaso Celina ama a<br />

Cândido, o primeiro <strong>de</strong>grau da escadinha <strong>de</strong>ve chamar-se – gratidão – e o segundo,<br />

então, curiosida<strong>de</strong>.<br />

Nesse estado dos acontecimentos, e do que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la se passara e se estava<br />

passando, Celina lembrou-se ainda que nas noites <strong>de</strong> serão, em que Cândido se<br />

<strong>de</strong>morava em aparecer, ela se achava <strong>de</strong>scontente, olhava a miúdo para a porta da<br />

sala, e ao menor ruído <strong>de</strong> uma pessoa que entrava sentia um movimento que, ou era<br />

uma mistura <strong>de</strong> esperança e <strong>de</strong> temor, ou uma sensação que ela não podia explicar a<br />

si mesma; e se enfim o mancebo chegava, seu <strong>de</strong>scontentamento como por encanto<br />

<strong>de</strong>saparecia, do mesmo modo que resistia a todos os seus esforços e a acompanhava<br />

durante o resto do serão, se Cândido faltava a ele.<br />

Lembrava-se que lhe inundava o coração um prazer imenso quando o moço a<br />

ela se chegava, e lhe dizia a tremer algumas palavras; e não sabia por que, tendo às<br />

vezes <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r-lhe, tremia também e corava...<br />

Lembrou-se enfim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mil outras lembranças, do serão que houvera<br />

nessa noite; <strong>de</strong>ssa primeira vez que com Cândido dançara, da perturbação <strong>de</strong> ambos<br />

durante toda a quadrilha; dos monossílabos que lhe ouvira; e do fundo do coração<br />

agra<strong>de</strong>ceu ao bom velho e seu avô, que lhe fizera conhecer nessa noite quando é que<br />

é belo o dançar.<br />

De tudo isto era preciso tirar uma conclusão... a lógica do coração estava<br />

provavelmente oferecendo à “Bela Órfã” uma conseqüência positiva e<br />

inquestionável, que apenas os véus da inocência podiam encobrir ainda, quando ela<br />

foi arrancada <strong>de</strong> suas cogitações por uma voz sonora e doce, que entoava, posto que<br />

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