OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
pieda<strong>de</strong>... nada <strong>de</strong> misericórdia para mim... eu sei bem que não as mereço; porém<br />
meu pobre pai!<br />
– O sr. Anacleto?...<br />
– Amanhã... <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> amanhã... daqui a três ou quatro dias, ao muito, o meu<br />
terrível inimigo se apresentará diante do cansado e amoroso velho. Eu o estou<br />
vendo, senhor, magro... pálido... melancólico... com a cabeça branca,<br />
embranquecida pelos cuidados que comigo teve, e pelos <strong>de</strong>sgostos que lhe eu tenho<br />
dado; ele esten<strong>de</strong> temeroso a mão para receber uma carta, que o monstro lhe vai<br />
entregar... oh! ele a lê... é a <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong> sua filha... é a mão da maior <strong>de</strong>sgraça que o<br />
empurra para a cova... oh! o pobre velho não po<strong>de</strong> mais com a vida... ve-me<br />
chorando, e perdoa-me!... mas chora, por sua vez! o resto da vida que ainda tinha ele<br />
o <strong>de</strong>sfaz em lágrimas! chora e morre!...<br />
– Ah! senhora! que imagem!<br />
– No entanto, senhor, nós ficamos no mundo; prosseguiu com ironia<br />
<strong>de</strong>sesperadora a viúva. Celina é sua... o amor os liga... a religião soldou os laços;<br />
mas quando ao anoitecer o sr. Cândido voltar para casa no meio <strong>de</strong>ssas mulheres<br />
doentes... andrajosas... trazendo no rosto a cor amarelenta da miséria, ou melhor,<br />
senhor, a cor <strong>de</strong> todas as misérias; magras, abatidas, mendicantes; aparecerá um<br />
vulto mais tocante que todos aqueles vultos... ao menos para o sr. Cândido. Serei eu,<br />
senhor! esten<strong>de</strong>rei a minha mão para receber um vintém... e <strong>de</strong>pois... vagarosa...<br />
<strong>de</strong>svairada... louca, eu me irei retirando e balbuciando duas palavras que resumirão<br />
toda a minha história!... crime e miséria!...<br />
– Basta, senhora!<br />
– E <strong>de</strong> noite, senhor, no leito <strong>de</strong> amor, mesmo junto <strong>de</strong> Celina, a hedionda<br />
figura da mendiga há <strong>de</strong> aparecer na sua imaginação, e ainda mais... a mendiga há<br />
<strong>de</strong> estar apontando para um sepulcro... o sepulcro há <strong>de</strong> se ir abrindo... e <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>le irá saindo branca... branca a cabeça <strong>de</strong> um velho... e o rosto <strong>de</strong>ste velho há <strong>de</strong> ir<br />
aparecendo horrivelmente contraído diante da miséria da mendiga!... serão dois<br />
espectros... um pai e uma filha! um pai morto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgostos... uma filha perdida pelo<br />
crime e pelos remorsos! serão dois espectros, senhor, Anacleto e Mariana.<br />
– Basta, senhora!... exclamou <strong>de</strong> novo Cândido, cuja imaginação ar<strong>de</strong>nte dava<br />
cores ainda mais vivas ao horrível quadro que lhe traçava a viúva.<br />
– Pieda<strong>de</strong>!... misericórdia!... dizia esta sem cessar, abraçando-se com as<br />
pernas do mancebo.<br />
– Oh! meu Deus! meu Deus!...<br />
Um pensamento novo e atrevido, uma <strong>de</strong>ssas idéias rápidas, brilhantes,<br />
felizes, dignas somente <strong>de</strong> uma imaginação <strong>de</strong> mulher, brilhou nos olhos <strong>de</strong><br />
Mariana.<br />
Ela ergueu-se, enxugou as lágrimas, e com voz segura perguntou a Cândido:<br />
– Que ida<strong>de</strong> tem, senhor?<br />
– Vinte e um anos.<br />
– E eu tenho trinta e seis, disse ela.<br />
– Que quer dizer?...<br />
195