OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
OS DOIS AMORES Joaquim Manuel de Macedo CAPÍTULO I O ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
E sua cabeça lhe mostrava a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>spótica e tirânica empurrando-o para<br />
longe <strong>de</strong> Celina, erguendo entre ela e ele um muro <strong>de</strong> bronze, em cujo cimo estava<br />
escrito – impossível – impossível; porque o século pertence ao ouro, e o homem<br />
pobre <strong>de</strong>ve abafar suas afeições...<br />
Mas o coração que ama, não crê nessa palavra – impossível –; o coração não<br />
sabe que no mundo há ouro; não raciocina para <strong>de</strong>pois amar: o coração ama, porque<br />
ama.<br />
E todavia se Cândido fosse cair aos pés da “Bela Órfã”, se lhe pedisse seu amor<br />
e sua mão, a socieda<strong>de</strong> teria <strong>de</strong> perguntar-lhe:<br />
– Quem és tu?...<br />
– Um pobre rico <strong>de</strong> honra.<br />
E a socieda<strong>de</strong> havia <strong>de</strong> rir-se, e <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r-lhe: – não basta.<br />
E viria <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le um outro <strong>de</strong> quem se pu<strong>de</strong>sse dizer – Um rico pobre <strong>de</strong><br />
mérito.<br />
E a esse respon<strong>de</strong>ria a socieda<strong>de</strong>: – é <strong>de</strong> sobra.<br />
Atormentado por essas reflexões, que até certo ponto exprimiam nuamente a<br />
verda<strong>de</strong>, o caráter da época atual, Cândido caminhava a passos largos sem ver, sem<br />
ouvir, sem atentar coisa alguma.<br />
Irias acompanhava a custo, e como que espantada, ao ar<strong>de</strong>nte moço. Tendo-lhe,<br />
como foi dito, caído a mantilha ao pé do túmulo <strong>de</strong> Paulo Ângelo, quando <strong>de</strong> novo<br />
nela se envolveu, colocou-a mal, e uma porção <strong>de</strong> seus longos cabelos brancos ficou<br />
flutuando sobre ela. E Cândido, levando-a estouvadamente, e caminhando sem<br />
reflexão, ora com Irias se esbarrava contra os que vinham, ora <strong>de</strong>ixava que a pobre<br />
velha se salpicasse <strong>de</strong> lama.<br />
Indiferente a tudo isso, surdo à voz <strong>de</strong> Irias, todo entregue a seu pensamento<br />
único, foi somente ao aproximar-se <strong>de</strong> sua pobre casa que Cândido se sentiu<br />
<strong>de</strong>spertar por um grito <strong>de</strong> escárnio.<br />
– Bruxa!... bruxa!... bradavam <strong>de</strong> todos os lados.<br />
Entretanto também Celina se retirara da igreja <strong>de</strong> S. Francisco <strong>de</strong> Paula em<br />
companhia <strong>de</strong> seu avô e sua tia. A carruagem, em que vinha o velho e as duas<br />
senhoras, parou no alpendre do “Céu cor-<strong>de</strong>-rosa”, e quando os três acabavam <strong>de</strong><br />
apear-se, foram atraídos pelos gritos, que <strong>de</strong> todas as partes soavam.<br />
Cândido e Irias viam-se cercados por uma chusma <strong>de</strong> garotos, que tomavam a<br />
velha para alvo <strong>de</strong> suas zombarias.<br />
Como os cães que, em nossa terra, investem <strong>de</strong> preferência contra os negros,<br />
porque sentem o <strong>de</strong>sprezo que se vota a essa classe <strong>de</strong>sgraçada, a escória da<br />
socieda<strong>de</strong>, imitando os gran<strong>de</strong>s, escarnecia da pobreza daquela mulher.<br />
Jacó e Helena riam-se daquela cena <strong>de</strong> escândalo, como se ela fora uma cena<br />
<strong>de</strong> prazer público; e ambos eles excitavam, em voz baixa, os garotos que passavam<br />
perto <strong>de</strong> suas janelas, a continuar em seus insultos e redobrar os gritos que soltavam.<br />
– Bruxa!... fora a bruxa!... bradavam uns.<br />
– Lá vai a velha bruxa!... clamavam outros.<br />
Alguns já tinham ousado chegar-se a suas vítimas, e a mantilha da velha estava<br />
25