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lolita_vladimir_nabokov

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uma vez em Cap Cod e que passava a vida a escrever-me,<br />

para as minhas várias moradas, dizendo que a filha e eu<br />

fazíamos um par maravilhoso, como se tivéssemos nascido<br />

um para o outro, e como seria bom se nos casássemos. A<br />

outra carta, que abri e a que dei uma vista de olhos rápida<br />

no elevador, era de John Farlow.<br />

Tenho notado muitas vezes que possuímos tendência para<br />

dotar os nossos amigos com a estabilidade de tipo que as<br />

personagens literárias adquirem na mente do leitor. Por<br />

muitas vezes que reabramos o Rei Lear, jamais<br />

encontraremos o bom rei a emborcar a sua caneca de<br />

cerveja, numa grande farra, esquecidos todos os infortúnios,<br />

numa alegre reunião com todas as suas três filhas e os seus<br />

cãezinhos de regaço. Ema jamais se reanimará, também,<br />

ressuscitada pelos sais compreensivos da lágrima oportuna<br />

que Flaubert fez chorar ao pai. Sejam quais forem as<br />

evoluções por que passou esta ou aquela personagem<br />

popular entre as páginas de um livro, o seu destino está<br />

fixado no nosso espírito. Similarmente, esperamos que os<br />

nossos amigos sigam este ou aquele rumo convencional e<br />

lógico que para eles determinámos. Assim, X jamais<br />

comporá a música imortal que estaria em total desacordo<br />

com as sinfonias de segunda categoria a que nos habituou.<br />

Y jamais assassinará. Z jamais nos atraiçoará, sejam quais<br />

forem as circunstâncias.<br />

Temos tudo isso bem arrumadinho no nosso espírito, e<br />

quanto menos vemos determinada pessoa mais nos compraz<br />

verificar, sempre que dela temos notícias, como respeita<br />

obedientemente a ideia que fazemos a seu respeito.<br />

248<br />

Qualquer desvio do destino que fixámos parece-nos não só<br />

anómalo, mas também contrário à ética. Preferíamos não ter<br />

conhecido o nosso vizinho, vendedor reformado de<br />

cachorros quentes, se vimos a saber que acaba de publicar<br />

o melhor livro de poesia do século.

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