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lolita_vladimir_nabokov

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Houve um dia, na nossa primeira viagem - no nosso<br />

primeiro circuito do Paraíso - em que, para gozar os meus<br />

fantasmas em paz, decidi firmemente ignorar o que não<br />

podia deixar de compreender: que, para ela, não era um<br />

namorado, nem um homem sedutor, nem um camarada,<br />

nem sequer uma pessoa, e sim, apenas, dois olhos e um<br />

palmo de músculo ingurgitado - para mencionar somente as<br />

coisas mencionáveis. Houve um dia em que, depois de<br />

recusar cumprir a promessa funcional que lhe fizera na<br />

véspera (qualquer coisa em que o seu engraçado<br />

coraçãozinho tinha empenho - um ringue de patinagem com<br />

um piso especial de plástico ou uma matinée a que queria ir<br />

sozinha), vi por acaso, da casa de banho, graças a uma<br />

ocasional combinação de espelho inclinado e porta<br />

entreaberta, uma expressão no seu rosto... uma expressão<br />

que não consigo descrever exactamente... uma expressão<br />

de tão perfeito desespero que parecia transmutar-se<br />

gradualmente noutra de confortável inanidade,<br />

precisamente porque fora atingido o próprio limite da<br />

injustiça e da frustração - e cada limite pressupõe algo para<br />

além dele, daí a compreensão neutra. E, se tiverem em<br />

mente que se tratava das sobrancelhas arqueadas e dos<br />

lábios entreabertos de uma criança, poderão avaliar melhor<br />

os abismos de carnalidade calculada e o pensado desespero<br />

que me contiveram e impediram de cair aos seus queridos<br />

pés e desfazer-me em lágrimas humanas, e sacrificar o meu<br />

ciúme aos prazeres que Lolita esperasse, porventura,<br />

encontrar na companhia de crianças sujas e perigosas num<br />

mundo exterior que era real para ela.<br />

Mas ainda tenho outras recordações sufocadas, que se<br />

desdobram agora em monstros de dor desprovidos de<br />

membros. Uma vez, numa rua de Beardsley envolta no<br />

poente, ela voltou-se para a pequena Eva Rosen (eu levava<br />

as duas ninfitas a um concerto e caminhava atrás delas, mas<br />

tão perto que quase lhes podia tocar com o meu corpo),<br />

voltou-se para Eva e, muito serena e seriamente, em<br />

resposta a qualquer coisa que a outra

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