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lolita_vladimir_nabokov

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O que eu ouvia era a melodia de crianças a brincar, nada<br />

mais do que isso, e tão límpido era o ar no conjunto desse<br />

vapor de vozes reunidas, majestosas e insignificantes,<br />

longínquas e magicamente próximas, francas e divinamente<br />

enigmáticas - nesse conjunto conseguia-se ouvir de vez em<br />

quando, como que liberto, um jorro de riso vibrante quase<br />

articulado, ou o bater de um bastão de basebol, ou o fragor<br />

de um comboio de brincar; mas a distância era tão grande<br />

que o olhar não lograva distinguir qualquer movimento nas<br />

ruas claramente delineadas. Fiquei a ouvir essa vibração<br />

musical na minha encosta altaneira, esses ecos de gritos<br />

isolados com uma espécie de murmúrio afectado a servir de<br />

fundo - e, de repente, compreendi que o tormento<br />

dolorosamente pungente não era a ausência de Lolita a meu<br />

lado, e, sim, a ausência da sua voz naquela harmonia.<br />

Esta é, pois, a minha história. Reli-a. Tem agarrada a ela<br />

fragmentos de medula, e sangue, e bonitas moscas de um<br />

verde-brilhante. Numa ou noutra passagem, sinto o meu<br />

esquivo eu furtar-se-me, mergulhar em águas mais negras e<br />

mais profundas do que ouso sondar. Camuflei o que pude,<br />

para não magoar as pessoas, e estudei muitos<br />

pseudónimos, para mim, antes de acertar com um que me<br />

pareceu particularmente apropriado. Nos meus<br />

apontamentos aparecem sugestões de Otto Otto, e Mesmer<br />

Mesmer e Lamber Lamber; mas creio que o escolhido<br />

exprime melhor a sordidez inerente.<br />

Quando, há cinquenta e seis dias, comecei a escrever Lolita,<br />

primeiro na enfermaria psicopática, onde estava sob<br />

observação, e depois nesta reclusão bem aquecida,<br />

conquanto que tumular, pensei que utilizaria estas notas in<br />

toto no meu julgamento, não para salvar a cabeça,<br />

evidentemente, mas, sim, para salvar a alma. A meio da<br />

composição, porém, compreendi que não poderia exibir a<br />

Lolita viva. Talvez utilize passagens destas memórias em<br />

sessões à porta fechada, mas a publicação terá de ser<br />

adiada.

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