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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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feminino não são naturais e que nunca poderá transformar o seu corpo de maneira a<br />

corresponder ao ideal em questão.<br />

Portanto, em Jamoulle como em Declerck, os deserda<strong>do</strong>s nunca conseguem<br />

reconhecer os momentos de viragem no seu percurso biográfico, aqueles momentos em<br />

que uma escolha errada, um sinal que deveriam ter entendi<strong>do</strong> e que entenderam mal, ou<br />

simplesmente um azar, originaram o mal. Yérina, como outros, culpa o destino, ou os<br />

espíritos malévolos, envia<strong>do</strong>s por alguém por intermédio de um bruxo. Note-se de<br />

passagem que os indivíduos de origem europeia entrevista<strong>do</strong>s por Jamoulle falam de<br />

personalidade fragmentada, de múltiplos «eu» em luta entre eles, enquanto os indivíduos<br />

originários da África central preferem atribuir o mal a um espírito negativo que os possui e<br />

destrói lentamente. Como veremos mais à frente, esta descrição de uma mente<br />

fragmentada, de alguém <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por uma parte desconhecida de si próprio, não se afasta<br />

assim substancialmente de algumas interpretações contemporâneas <strong>do</strong> trágico. Mesmo se<br />

Jamoulle não dá muita importância a estas crenças, mesmo se não vê que aqui haveria<br />

espaço para falar também de trágico, o mais importante não é a realidade <strong>do</strong> espírito<br />

malévolo (é irrelevante se recetor acredita ou não na sua existência), mas a realidade da<br />

convicção <strong>do</strong> sujeito.<br />

Por fim, aqui como em Declerck, o teatro serve de referência para qualificar<br />

situações trágicas. Assim, quan<strong>do</strong> estuda os conflitos que afetam certas famílias de origem<br />

turca, Jamoulle encontra na tragédia clássica o termo de comparação que lhe permite<br />

estabelecer uma equivalência entre o texto e a situação: «Le conflit de valeurs, quand il est<br />

sans issue, est le principal ressort des tragédies classiques. Aussi, dans notre quartier, les<br />

drames intimes se multiplient.» (Jamoulle, 2009: 166). Acrescenta a seguir que nas famílias<br />

turcas que observou existe de facto um conjunto de valores e representações que perpassa<br />

de pais para filhos e que entram muitas vezes em conflito quan<strong>do</strong> os filhos, sobretu<strong>do</strong> as<br />

jovens mulheres (fala da diferença sexuada construída como de um «género trágico»),<br />

pretendem pôr em causa as representações <strong>do</strong>minantes.<br />

Neste caso, o recurso à tragédia ganha alguma pertinência, pois muitas tragédias são<br />

estruturadas em torno <strong>do</strong> conflito entre valores ou normas, uma característica que<br />

Schelling, Hegel, ou ainda de Romilly – autores que reencontraremos mais à frente neste<br />

capítulo –, entre outros, tinham de facto aponta<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, existe aqui uma aporia que<br />

não diz o seu nome e que já se encontra no texto de Declerck. Os sujeitos observa<strong>do</strong>s são<br />

claramente seres trágicos, seres cujo percurso biográfico merece a qualificação de tragédia,<br />

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