24.06.2013 Views

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Nota-se desde já que esta ligação, já presente em A Gloriosa Família, transparece<br />

igualmente várias vezes em Preda<strong>do</strong>res, romance que será analisa<strong>do</strong> a seguir. Assim, no início<br />

<strong>do</strong> romance, os jovens Caposso e Lopes são apanha<strong>do</strong>s pelo pai de Sebastião a ouvirem a<br />

rádio <strong>do</strong> MPLA. Pepetela descreve naquele momento uma figura recorrente nos sistemas<br />

coloniais: a <strong>do</strong> polícia ajudante das forças coloniais:<br />

O pai de Sebastião era, nas palavras <strong>do</strong> filho, um reaccionário, defendia os colonos,<br />

eles é que trouxeram os carros e a luz eléctrica, são boa gente que nos quer civilizar.<br />

Mas pior que tu<strong>do</strong> isso, o pai de Sebastião era polícia auxiliar, vulgo cipaio, o<br />

instrumento mais dócil da máquina de repressão, no dizer <strong>do</strong>s revolucionários.<br />

(Pepetela, 2005: 77)<br />

Mais à frente acrescenta o narra<strong>do</strong>r que, depois da independência, o pai de<br />

Sebastião não só se manteve na polícia, como conseguiu «lugar de algum destaque na<br />

corporação» (Pepetela, 2005: 91). À semelhança <strong>do</strong> agente Rosas em Jaime Bunda e a morte <strong>do</strong><br />

Americano, o pai de Sebastião perpetua paradigmaticamente, através da violência e <strong>do</strong><br />

arbitrário, a ligação da polícia <strong>colonial</strong> com a <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong>. 273<br />

É neste contexto que o trágico aparece nos romances policiais de Pepetela. É<br />

sabi<strong>do</strong> que a relação <strong>do</strong> romance policial com o trágico vem de longe. É tão antiga como a<br />

narrativa de enigma. Assim, para muitos teóricos, Édipo Rei poderia ser considera<strong>do</strong> como<br />

estan<strong>do</strong> na origem da narrativa de enigma, uma espécie de texto policial avant la lettre onde o<br />

investiga<strong>do</strong>r é sucessivamente vítima, assassino, suspeito e culpa<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong> no decorrer<br />

da peça de Sófocles de uma posição à outra 274 com a progressão <strong>do</strong>s interrogatórios. Os<br />

próprios autores de policiais não negaram a relação entre romance policial, trágico e<br />

tragédia. Simenon, por exemplo, tinha perfeita consciência de com os seus Maigret, mas<br />

também com os seus romances «duros», escrever pequenas tragédias, onde um trágico<br />

íntimo, priva<strong>do</strong> encontrava espaço para se manifestar. 275<br />

273 Noutro contexto, Driss Chraïbi (1926-2007), autor marroquino de romances policiais tão subversivos<br />

como os de Pepetela (tanto na forma como no conteú<strong>do</strong>), também estabelecia a ligação entre tempos<br />

coloniais e pós-coloniais através da figura <strong>do</strong> polícia. Em Une enquête au pays (1981), o pai <strong>do</strong> chefe <strong>do</strong> inspetor<br />

Ali já era polícia durante o regime <strong>colonial</strong> e o filho aproveitou a independência para subir na hierarquia. À<br />

semelhança de alguns polícias descritos por Pepetela, não vê a sua função como uma maneira de ajudar na<br />

emancipação <strong>do</strong> país mas como uma fonte de privilégios (Chraïbi, 1981: 18-21). Valeria a pena reler a<br />

produção policial de Chraïbi, também autor de romances pertencentes à esfera de produção restrita, em<br />

paralelo com a série Jaime Bunda, pois encontramos ali em permanência o Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong> representa<strong>do</strong><br />

como uma força que pesa nos condena<strong>do</strong>s marroquinos.<br />

274 Sobre esta questão, ver Dubois («Le genre où Œdipe est Roi») (2005: 205-218). A prestigiada coleção Série<br />

Noire (Gallimard) propôs uma adaptação romanesca da peça, assumin<strong>do</strong> neste gesto audacioso a filiação entre<br />

tragédia antiga e romance contemporâneo de enigma.<br />

275 Eis o que dizia em entrevista à Radio France em 1955: «Je considère que le roman est la tragédie<br />

d’aujourd’hui. Si les grands tragédiens de jadis vivaient aujourd’hui, je ne crois pas qu’ils écriraient des<br />

334

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!