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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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mas, pelo seu estatuto – seres desprovi<strong>do</strong>s de qualidades, seres sem nome, sem a grandeza<br />

<strong>do</strong>s heróis trágicos gregos ou franceses –, nunca poderiam ser considera<strong>do</strong>s personagens<br />

pelos teóricos da tragédia clássica. Existe na tragédia clássica um conflito de valores, sem<br />

dúvida, mas um conflito que dilacera homens e mulheres de alta linhagem, homens e<br />

mulheres que expressam o conflito numa linguagem rebuscada. Se os deserda<strong>do</strong>s e os<br />

vagabun<strong>do</strong>s se assemelham a personagens de tragédia será mais no que tem a ver com a<br />

“nova tragédia”, a que, de Büchner a Beckett, povoou os palcos europeus de vagabun<strong>do</strong>s<br />

sem nome, sem estatuto, reduzi<strong>do</strong>s a um corpo sofre<strong>do</strong>r e com dificuldade em comunicar.<br />

Os seres comuns, com os seus «dramas íntimos» de que fala Jamoulle, não tinham lugar nos<br />

palcos clássicos ou apenas o tinham, como em Sófocles ou em Shakespeare, como<br />

personagens secundárias e sem estatuto trágico.<br />

Terei a oportunidade de voltar a este ponto mais à frente, mas fica patente num<br />

certo senso comum a associação <strong>do</strong> trágico ao teatro, particularmente à tragédia, mesmo se<br />

a associação nunca é objeto de uma reflexão mais desenvolvida. Mais uma vez, a associação<br />

parece “natural”, levan<strong>do</strong>, por exemplo, Jamoulle a confundir a certa altura o trágico como<br />

essência com o trágico como “efeito de sintaxe”. Além disso, a antropóloga não parece ver<br />

que o trágico é muitas vezes o resulta<strong>do</strong> de uma reconstituição a posteriori de percurso(s)<br />

biográfico(s). É só no après coup da representação que uma vida aparece como trágica, pois<br />

no seu decorrer, muitas vezes, é mais a sensação de caos, de acaso, até de absur<strong>do</strong>, que<br />

impera. Por outras palavras, quan<strong>do</strong> Jamoulle se diz espantada com a «essência trágica das<br />

narrações de família», não se dá conta de que o trágico de que fala é o que transparece das<br />

suas próprias reconstituições com introdução, peripécias, coups de théâtre, e não a vida <strong>do</strong>s<br />

indivíduos entrevista<strong>do</strong>s, pois os seus discursos por regra geral não fazem senti<strong>do</strong>, baseiam-<br />

se numa sintaxe, que, à semelhança <strong>do</strong>s próprios percursos, é antes de mais fragmentada,<br />

incompleta, absconsa.<br />

Mesmo assim, são discursos que foram objeto de uma reelaboração onde a<br />

invenção, a mentira e a manipulação desempenham um papel importante. Jamoulle fala de<br />

passagem em «récits réélaborés et réinventés» sem aparentemente encarar a possibilidade de<br />

interpretar o seu trabalho como manipulação de uma manipulação. Há mais ainda: é o<br />

próprio observa<strong>do</strong>r, ao reordenar ambas as sintaxes, a da língua como a da vida, que faz de<br />

um percurso de vida um percurso trágico, ou seja, mais uma vez, aqui como em Sófocles,<br />

Shakespeare ou Pepetela, é o recetor que, em parte, faz <strong>do</strong> sujeito/personagem um ser<br />

trágico.<br />

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