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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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personagem que declama perante uma multidão? Se for para o evidenciar, porque não<br />

temos acesso à sua identidade, ao lugar onde fala, ao tema da declaração, etc.?<br />

A omissão funciona aqui tanto ao nível da forma (as imagens mudas, o que mostra<br />

a inépcia <strong>do</strong> truísmo jornalístico que afirma que «uma imagem fala por si») como <strong>do</strong><br />

conteú<strong>do</strong> (o «tu<strong>do</strong> tinha começa<strong>do</strong> bem» não encara certamente a presença <strong>colonial</strong><br />

francesa nem a responsabilidade pós-<strong>colonial</strong> <strong>do</strong>s governos franceses sucessivos na<br />

instabilidade política que se seguiu à independência). O resto da história <strong>do</strong> país é reduzi<strong>do</strong><br />

a uma sucessão de golpes ou de tentativas de golpes e à rápida evocação das duas ditaduras<br />

Duvallier (pai e filho). O que permite ao jornalista concluir em off, com planos de jovens<br />

arma<strong>do</strong>s que deverão evocar para o senso comum os gangs, a criminalidade violenta:<br />

«Aujourd’hui, l’île vit au rythme des instabilités politiques… En 200 ans, l’île a sombré et<br />

perdu ses rêves».<br />

Se estes escassos <strong>do</strong>is minutos permitiram ao telespecta<strong>do</strong>r associar o Haiti a outras<br />

representações veiculadas pelos noticiários a propósito de parte <strong>do</strong> continente africano,<br />

omitiram, consciente ou inconscientemente, as responsabilidades respetivas <strong>do</strong> antigo<br />

poder <strong>colonial</strong> por um la<strong>do</strong> (França) 76 e <strong>do</strong> poder neo<strong>colonial</strong> por outro la<strong>do</strong> (os Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s, que ocuparam de facto o Haiti de 1915 a 1934). O carácter lacónico da afirmação –<br />

«a ilha afun<strong>do</strong>u-se e perdeu os seus sonhos» – remete ainda para o que o Texto<br />

contemporâneo diz em geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong>, ou seja, que houve esperança mas que<br />

o desmoronamento é geral. Neste aspeto, a diferença de locus não parece significativa: as<br />

posições <strong>do</strong> Haiti e de qualquer outro país em guerra no continente africano são<br />

permutáveis. Na Ilha como no Continente, «Tout avait si bien commencé»…<br />

Esta articulação entre o sonho atraiçoa<strong>do</strong> e o consecutivo insucesso permite voltar<br />

a Smith, Memmi e Béji, pois, para estes também, o ponto de partida é a constatação <strong>do</strong><br />

fracasso <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong> e, à semelhança <strong>do</strong> que se verifica na reportagem analisada,<br />

as razões <strong>do</strong> fracasso recaem inteiramente sobre os autóctones. Antes de passar à análise<br />

<strong>do</strong>s três textos, é preciso evidenciar o capital simbólico apreciável de cada um <strong>do</strong>s autores.<br />

Stephen Smith, francês de origem norte-americana, era na altura da publicação <strong>do</strong> seu texto<br />

(2003) responsável pelo serviço África <strong>do</strong> jornal Le Monde, depois de ter ocupa<strong>do</strong> funções<br />

76 Neste caso, tratar-se-á possivelmente de um caso de manipulação consciente. Depois da contextualização, o<br />

pivô anuncia com um orgulho não dissimula<strong>do</strong>: «En tout cas, depuis plusieurs heures le monde se mobilise<br />

pour Haïti, à commencer par la France». Não se trata só de exonerar a França <strong>do</strong> seu passa<strong>do</strong> como também de a<br />

apresentar como a salvação das vítimas da catástrofe.<br />

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