24.06.2013 Views

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Pois é. Quan<strong>do</strong> eu estava na guerra era um herói, das gloriosas FAPLA, porque<br />

defendia a vossa vida. E vocês aqui porreiros na cidade. Agora que perdi as pernas,<br />

já não sou herói, nem direito tenho de viver. E vocês continuam porreiros aqui.<br />

(Pepetela, 2008: 95)<br />

Não será ilegítimo ver neste episódio uma das possíveis origens de outro ex-<br />

combatente, Simão Kapiangala, que desempenha um papel semelhante mas de maior<br />

destaque em Preda<strong>do</strong>res. Aqui, como nos outros textos <strong>do</strong> corpus, o condena<strong>do</strong>, o pobre<br />

diabo, surge como vítima involuntária de um processo que o <strong>do</strong>mina em grande parte e no<br />

qual se origina a sua desgraça. O desgraça<strong>do</strong> transforma<strong>do</strong> em ser trágico surge assim<br />

trezentos anos depois de Thor, no mesmo lugar, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> igualmente por uma<br />

superestrutura: enquanto Thor fora aniquila<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong> <strong>colonial</strong>, Kapiangala é-o pelo<br />

Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong>.<br />

Kapiangala não estava destina<strong>do</strong> a se tornar um ser trágico (como aliás Júlio<br />

Fininho ou Thor não estavam), pois tinha um projeto de vida e, ao contrário de várias<br />

personagens de Sony Labou Tansi, não apresentava sinais da angústia de viver. Ou seja, em<br />

Pepetela, as personagens não sofrem pelo simples facto de viverem, não atravessam crises<br />

existenciais profundas que as remeteriam para um trágico de natureza ontológica. Sofrem,<br />

antes, pelo facto de não conseguirem impor o seu projeto à superestrutura que as <strong>do</strong>mina.<br />

É muito claro no caso de Kapiangala, que «entrou na escuridão maior que a noite» quan<strong>do</strong><br />

pisou uma mina durante um treino em 1994 (Pepetela, 2005: 158). Apesar de um médico<br />

cubano lhe ter salva<strong>do</strong> a vida, a sua degradação física relega-o para o pólo <strong>do</strong>s condena<strong>do</strong>s.<br />

O seu sofrimento assemelha-o a outras personagens trágicas de Tansi e Nkashama, com<br />

uma diferença notável: o militar que, na obra <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is escritores congoleses, correspondia a<br />

uma das fontes possíveis <strong>do</strong> mal torna-se em Pepetela ele próprio vítima de um Esta<strong>do</strong><br />

encara<strong>do</strong> como estrutura opressora.<br />

De facto, este parece ter esqueci<strong>do</strong> de vez o ex-combatente e, aos olhos de<br />

Kapiangala (mas igualmente aos de Fininho e <strong>do</strong> anónimo ex-combatente de O Desejo de<br />

Kianda), o Esta<strong>do</strong> surge como uma espécie de força que o impede de viver com dignidade.<br />

Priva<strong>do</strong> de reforma e de alojamento, teve de fazer da rua o seu ganha-pão bem como o seu<br />

refúgio/abrigo, e mesmo ali não consegue escapar à superestrutura, pois, de vez em<br />

quan<strong>do</strong>, as autoridades repelem os aleija<strong>do</strong>s para fora da cidade. A sua redução a um ser<br />

sem qualidades, a um “pobre diabo”, aparece nitidamente no decorrer <strong>do</strong> nono capítulo<br />

(«Junho de 1998»), nomeadamente na descrição <strong>do</strong> seu espaço de vida: a rua, mas<br />

342

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!