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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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A fábula evidencia o quão empenhada, no senti<strong>do</strong> que a teoria da literatura deu à<br />

palavra, é esta peça em particular, como aliás a produção teatral de Tansi em geral. Já no<br />

paratexto, o autor reivindicava mais uma vez a tomada da palavra como inevitável,<br />

definin<strong>do</strong>-a como sen<strong>do</strong> ao mesmo tempo palavra de «sauvetage»/«sauvage»<br />

[salvamento/selvagem], com o intuito de dar alma e significa<strong>do</strong> às coisas (o título <strong>do</strong><br />

paratexto é «J’enseigne l’âme aux choses»). A este paratexto ao qual só tem acesso o leitor,<br />

segue-se um prólogo, encara<strong>do</strong> como voz-personagem que retoma para os <strong>do</strong>is recetores<br />

fictícios (o leitor e/ou espeta<strong>do</strong>r) elementos específicos <strong>do</strong> paratexto sonyano. No<br />

«Premier soir», o prólogo focaliza o seu discurso não sobre a ação ou as personagens que<br />

lhe seguirão, mas sobre a noção de «buraco», com este entendi<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> metafórico<br />

(aliás, a primeira ocorrência da palavra aparece entre aspas). Trata-se sucessivamente <strong>do</strong><br />

buraco da vida, <strong>do</strong> buraco <strong>do</strong>s outros, <strong>do</strong> buraco das esperanças, da realidade, <strong>do</strong>s sonhos e<br />

das religiões. Acrescenta a seguir, o que nos leva de volta ao trágico, que a «carne» humana<br />

é também uma espécie de buraco cava<strong>do</strong> pela própria carne: «Le trou des religions et celui<br />

que fait en vous votre propre viande» (Premier soir). Parece assim sugerir que o mal não tem<br />

origem numa divindade qualquer mas no seio de qualquer ser humano, ou seja, como<br />

vimos no capítulo IV, radica numa parte mal conhecida de nós próprios. O teatro que<br />

anuncia não impede a queda <strong>do</strong> ser no “buraco da existência”, mas pelo menos ajuda a<br />

tomar consciência da inevitabilidade <strong>do</strong>s múltiplos “buracos” que nos rodeiam. Porém, só<br />

assim será se o teatro se empenhar, o que pressupõe uma maneira inédita de ver o mun<strong>do</strong>:<br />

«En fait, nous allons trouer la scène d’une nouvelle manière de regarder». Esta nova<br />

perspetiva para um prólogo, muito próximo das posições de Tansi no seu vasto paratexto,<br />

será assumidamente trágica: «Élargissez <strong>do</strong>nc vos yeux. Tout en sachant que, pour regarder<br />

certaines choses, il faut absolument des yeux tragiques».<br />

À semelhança <strong>do</strong> que se verifica noutras peças de Tansi, um elemento vem, muitas<br />

vezes, acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu oposto. Zagoubinoa intervém para cortar a palavra ao prólogo<br />

(«Foutez la paix à ces pauvres types») e lhe contrapor um discurso grotesco dirigi<strong>do</strong> a<br />

multidões imaginárias. Tansi deslocou aqui subtilmente o estatuto da palavra da<br />

personagem: se o prólogo se dirigia nitidamente ao recetor da peça, o louco parece virar-lhe<br />

as costas, se bem que, no teatro, o destinatário nunca esteja muito longe. Zagoubinoa<br />

celebra a pulsão vital, rejeita qualquer reflexão para circunscrever o humano à sua própria<br />

“carne”: «Et pendant que vous vous cassez la tête, je me casse la viande seulement».<br />

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