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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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A «diferença» em questão corresponde à «fronteira» de que falava há pouco, a<br />

distribuição <strong>do</strong>s indivíduos entre um la<strong>do</strong> e o outro em função <strong>do</strong> seu estatuto, o que<br />

transforma o escravo em ser trágico. O Esta<strong>do</strong> <strong>colonial</strong> aparece assim como um palco<br />

percorri<strong>do</strong> por uma fronteira social produtora de fortes desigualdades, mas, no contexto de<br />

uma representação literári,a percebemo-lo porque é contemplada como tal por um<br />

espeta<strong>do</strong>r à distância. De facto, como sabemos agora, o recetor precisa <strong>do</strong> olhar<br />

distancia<strong>do</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r que, distribuin<strong>do</strong> os papéis, transforma o ser sem qualidades em<br />

personagem trágica.<br />

Aos poucos, o que se vislumbra em A Gloriosa Família é o romance como<br />

encenação da origem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong>. Através das suas recorrentes prolepses, o<br />

próprio narra<strong>do</strong>r estabelece de facto o tempo <strong>do</strong>s flamengos em Luanda como sen<strong>do</strong> o<br />

tempo matricial para o Esta<strong>do</strong> e a sociedade contemporânea. O que o escravo-narra<strong>do</strong>r<br />

descreve neste Esta<strong>do</strong> embrionário é uma sociedade dividida por linhas, ou fronteiras,<br />

profundas que distribuem e excluem os indivíduos em função da cor da pele e <strong>do</strong> capital<br />

económico disponível. Longe de ser anómica, trata-se de uma sociedade que funciona mas<br />

só em prol <strong>do</strong>s poderosos. Veja-se, por exemplo, o problema <strong>do</strong> acesso à água: a maior<br />

parte das pessoas tem de mandar vir a água de longe, exceto os poderosos que possuem<br />

acesso privilegia<strong>do</strong> a um poço (Pepetela, 1997: 20).<br />

Neste contexto, os Van Dum desempenham um papel de ligação entre os tempos,<br />

o da História, que corresponde na diegese ao perío<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> qual fala o narra<strong>do</strong>r (o<br />

século XVII), e o presente, que corresponde, no discurso, ao presente a partir <strong>do</strong> qual<br />

escreve a instância autoral. Por outras palavras, se o narra<strong>do</strong>r, a partir das informações que<br />

reúne, anuncia um futuro radioso para a família Van Dum, é porque a instância autoral, que<br />

constata a importância de certas famílias no Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong>, regressa ao passa<strong>do</strong> para<br />

entender a sua origem. Cruzam-se deste mo<strong>do</strong> o tempo da narração (passa<strong>do</strong> -> presente)<br />

e o tempo <strong>do</strong> discurso (presente -> passa<strong>do</strong>) para <strong>do</strong>tar o romance de Pepetela de uma<br />

perspetiva teleológica, pois, no contexto representa<strong>do</strong>, o núcleo Van Dum original só<br />

poderia ter esta<strong>do</strong> na origem de uma nova linhagem, com a sua rede de relações, o seu<br />

papel central na organização sociopolítica da cidade, com os seus habitus. 254<br />

254 Veja-se o hábito de Van Dum de convidar conheci<strong>do</strong>s aos Sába<strong>do</strong>s. Este costume perduraria no tempo,<br />

tornan<strong>do</strong>-se uma mania «que um dia, muito mais tarde, se haveria de estender a outras famílias em Luanda,<br />

como profetizava Matilde, a bela bruxa» (Pepetela, 1997: 180).<br />

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